RECOMENDAÇÃO n.º 18/A/2006
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal da Ribeira Grande
Proc.º: R-3646/04
Data: 28.11.2006
Área: A1 (Aç)


Assunto: Ambiente. Saúde pública. Condições de funcionamento de exploração pecuária na Rua Cónego Afonso da Costa Pereira, freguesia da Maia.


I
INTRODUÇÃO


1. Desde 2004, está em instrução neste órgão do Estado um processo aberto na sequência de uma queixa apresentada no interesse dos moradores da Rua Cónego Afonso da Costa Pereira, da freguesia da Maia, desse concelho. 


De acordo com o alegado, em terreno que confronta com as habitações aí existentes há uma exploração agro-pecuária em que estão alojados gado alfeiro, vitelos e, por vezes, vacas em período de parição; além disso, são regularmente instalados silos de milho e erva de silagem. 


Dessa proximidade entre as habitações e a exploração agrícola resulta a existência de graves problemas de salubridade e saúde públicas, havendo especiais razões de queixa nos meses de Novembro a Março. 


2. Face a este relato foi a autarquia solicitada a avaliar os invocados problemas de saúde e salubridade públicas, com especificação das acções de fiscalização desenvolvidas e a verificar o cumprimento das normas relativas a servidões administrativas, mormente quanto à existência de silos e ao lançamento de águas poluídas ou quaisquer despejos líquidos ou sólidos na via pública. 


2.1. Simultaneamente, foi solicitado que, em colaboração com a Direcção Regional do Desenvolvimento Agrário e a Autoridade de Saúde concelhia, fosse procurada uma solução articulada para o problema em causa, salvaguardando todos os interesses em presença. 


3. Dessa colaboração resultou um relatório apresentado na sequência de uma vistoria conjunta ao local. Aí escreve-se que a parcela é utilizada durante parte do ano como ‘parque de alimentação’ de bovinos. À data da vistoria eram visíveis restos de caules da cultura da Primavera/Verão (milho), restos de plástico preto usualmente utilizado na cobertura de silos várias poças de água na parcela e a via pública estava conspurcada com terra seca de escorrimentos do cerrado em causa. 


3.1. O proprietário da exploração, reconhecendo embora o incómodo, recusa deixar de utilizar aquele espaço já que, alega, o uso controverso é anterior à construção das residências e por preferir “tratar do assunto em tribunal”. 


3.2. Nas conclusões apresentadas as entidades intervenientes admitem que: 



a) “Se trata de uma situação desagradável para os vizinhos, pelo número de moscas que se podem juntar, pelo mau cheiro que pode emanar da parcela e dos escorrimentos de água suja (com terra e dejectos dos animais) para a via pública)”; 


b) “Se trata de uma situação que pode pôr em risco a saúde de quem ali vive e mesmo de quem passa na via pública”; 


c) É um facto comum nesta Região Autónoma, visto tratar-se de uma zona rural e a actividade em causa ser o sustentáculo económico da maioria da população; 


d) Torna-se, como tal, relevante que se tomem medidas concretas: a higienização dos locais de pasto; a higienização do transporte de gado entre os diversos pastos; a educação sanitária dos produtores de gado, medidas que devem ser concretizadas pelas autoridades sanitárias desta Região Autónoma em parceria com as associações de lavradores do arquipélago. 


4. Finalmente, em Outubro deste ano, essa autarquia comunicou que fora instaurado um processo de contra-ordenação ao titular da referida exploração pecuária, encontrando-se o processo em fase de elaboração do relatório final. 


II
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS


A


5. De acordo com a informação disponibilizada na página internet da Câmara Municipal da Ribeira Grande, o respectivo concelho abrange 179,5 km2 e 14 freguesias. Tem a sua sede na Cidade com o mesmo nome, elevada a esta categoria em 1981.

O concelho é o terceiro mais populoso do Arquipélago dos Açores, com 28.476 habitantes, logo a seguir a Angra do Heroísmo e a Ponta Delgada e, no conjunto do mesmo, um dos que mais contribui para a sua economia.

A freguesia da Maia está situada na costa norte da ilha de São Miguel e ocupa uma superfície de 21,97 km2, onde se incluem os lugares de Gorreana e Lombinha da Maia; confronta com o mar e com as freguesias de São Brás e Lomba da Maia (concelho de Ribeira Grande), Ribeira das Tainhas e Ponta Garça (concelho de Vila Franca do Campo) e Furnas (concelho de Povoação); tem uma população de 1.901 habitantes.

Actualmente, as actividades que mais se demarcam no concelho da Ribeira Grande são o cultivo de chá; a produção de licores, o comércio(estando em processo de criação uma Câmara do Comércio e Indústriado Concelho), a construção civil, a geotermia, os lacticínios, as pescas e o turismo.

A freguesia da Maia é uma vizinhança de predominância rural num concelho onde rapidamente ganham terreno as actividades de indústria e serviços.

Este sumaríssimo delineamento de caracterização socio-económica permite alcançar a dificuldade de encontrar em tempo justo uma solução que salvaguarde o núcleo essencial dos interesses em presença.

De um lado, o exercício de uma actividade económica com particular relevo na economia do concelho; de outro lado, o direito a um ambiente sadio.

B

6. A Constituição da República (CRP) garante o livre exercício da iniciativa económica privada “nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral” e “a todos é garantido o direito à propriedade privada” (v. artigos 61.º e 62.º).

A CRP consagra também o direito ao repouso, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, a uma habitação condigna e com padrões elementares de conforto (v. artigos 59.º, n.º 1, alínea d), 26.º, n.º 1. 66.º, n.º 1, e 65.º, n.º 1, da CRP).

No caso concreto, a aparente incompatibilidade de direitos há-de solucionar-se recordando que “o direito de propriedade não é um direito absoluto, tendo a propriedade, também, uma dimensão social. O direito de propriedade não permite que o seu titular possa [dele fazer o uso] que quiser, como quiser e quando quiser, mas sim o que for permitido por lei, pois que é tarefa fundamental do Estado promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo, defender a natureza e o ambiente e assegurar um correcto ordenamento do território e promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional” (v. Acórdão do STA de 12 de Dezembro de 2000).

7. Há, pois, que ponderar se estão disponíveis elementos que permitam determinar se o direito a um ambiente sadio e ecologicamente saudável está ou não a ser precludido pelo uso contestado do terreno em causa.   Para tanto, vejam-se as limitações legais a que está obrigado o proprietário do terreno.

7.1. O Decreto Legislativo Regional n.º 26/94/A, de 30 de Novembro, — que se mantém em vigor até à publicação do diploma regulamentar do Decreto Legislativo Regional n.º 18/2003/A, de 9 de Abril — interdita quer o estabelecimento de estábulos e silos a menos de 50m, 25m e 20m do limite da plataforma da via, consoante se trate, respectivamente, de estrada municipal, caminho municipal de 1.ª ou caminho municipal de 2.ª, quer o lançamento de águas residuais em valas ou outras condutas expostas a menos de 100m do limite da zona da via (v. artigo 55.º, alíneas d) e f)).

Foi justamente a violação destas normas que determinou a abertura de um processo de contra-ordenação.

Até porque o facto de ser uma actividade com especial relevo económico não pode impedir, por si só, que sejam preteridos os requisitos higiossanitários da mesma, muito pelo contrário.

Mas, não prevendo o regime contra-ordenacional a aplicação de sanções acessórias aptas a fazer cessar o comportamento em causa (v. n.º 5 do artigo 74.º do citado Decreto Legislativo Regional n.º 26/94/A, de 30 de Novembro), persistindo de forma continuada os prejuízos para os residentes da zona afectada e não tendo as entidades públicas regionais e locais chegado a uma plataforma de entendimento que permitisse a solução consensual do problema, importa encontrar uma solução de carácter permanente.

De facto, ao reconhecimento pelo próprio proprietário da exploração da existência de incómodos para os vizinhos, acrescem as conclusões da comissão de vistoria oportunamente transmitidas a este órgão do Estado: — do funcionamento daquela exploração pecuária naquele local resultam riscos acrescidos para a salubridade e a saúde públicas.

7.2. O Plano Director Municipal da Ribeira Grande, aprovado pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 17/2006/A, de 10 de Abril, classifica a zona onde se integra o terreno em causa como “urbanizável de média dimensão”, integrada, aliás, na “Unidade Operativa de Planeamento e Gestão da Maia” (UOPG n.º 6), para o qual se prevê “um crescimento sustentado e harmonioso” (v artigo 111.º do regulamento do plano). Note-se que, por força do artigo 48.º do mesmo regulamento, no interior dos espaços urbanizáveis são “interditas as instalações de criação de animais com fins comerciais” (v. artigo 40.º).

7.3. Acresce que, como já se viu, o direito a um ambiente humano e ecologicamente equilibrado, direito constitucionalmente consagrado e cuja concretização foi alcançada na Lei de Bases do Ambiente (LBA), impõe a observância do princípio de recuperação nos termos do qual “devem ser tomadas medidas urgentes para limitar os processos degradativos nas áreas onde actualmente ocorrem e promover a recuperação dessas áreas” (cf. artigos 2.º, n.º 1, e 3. º, alínea g), da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril).

Também o artigo 48.º, igualmente da LBA, define a obrigatoriedade de remoção das causas da infracção, bem como a reconstituição da situação anterior.

8. É neste contexto que há que invocar o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38 382, de 7 de Agosto de 1951, que vem fornecer os instrumentos que imediatamente permitem equacionar a solução do problema no quadro da legalidade vigente.

O exercício das competências de polícia administrativa por parte das câmaras municipais resulta da disciplina do RGEU, que dispõe que às câmaras municipais incumbe a fiscalização do mesmo (artigo 2.º).

Em sequência, o capítulo VII do RGEU, regula as condições de licenciamento e funcionamento das instalações para alojamento de animais situadas em zonas urbanas.

Aí, a primeira parte do corpo do artigo 115.º expressamente dispõe que as instalações para alojamento de animais somente poderão ser consentidas nas áreas habitadas ou suas imediações quando construídas e exploradas em condições de não originarem, directa ou indirectamente, qualquer prejuízo para a salubridade e conforto das habitações.

No seu parágrafo único acrescenta-se que as câmaras municipais poderão interditar a construção ou utilização de anexos para instalação de animais nos logradouros ou terrenos vizinhos dos prédios situados em zonas urbanas quando as condições locais de aglomeração de habitações não permitirem a exploração desses anexos sem risco para a saúde e comodidade dos habitantes.

Ora, como parece óbvio, a presença de animais a céu aberto pressupõe a construção de estábulo. Ou, por outras palavras: a circunstância de estarem abrigados no prédio rústico em questão diversos animais faz daquele espaço um curral ou um estábulo, e não apenas um “parque de alimentação”, se com a expressão se pretende limitar o alcance do citado artigo 115.º.

O RGEU não impede a existência de estabelecimentos de criação de gado em áreas habitacionais, mas exige a salvaguarda do conforto e da salubridade das habitações.

Importa destacar, pois, que os animais não podem estar em local próximo de habitações se esta presença afectar a salubridade e o conforto dos moradores.

No caso concreto, é exactamente tal circunstância que constitui, por si só, motivo impeditivo da subsistência do curral (ou estábulo), nos termos das disposições conjugadas da LBA e do RGEU.

A situação em causa não pode vir a ser regularizada, uma vez que é reconhecido que não é susceptível de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares, designadamente os do artigo 115.º do RGEU.

8.1. É certo que a Câmara Municipal poderia empenhar-se, conjuntamente com o proprietário reclamado, na busca de uma solução alternativa para a localização da instalação. É certo, também, que há todo o interesse em que, seguindo as sugestões do relatório de vistoria, sejam tomadas medidas que abranjam o conjunto do arquipélago: a higienização possível dos locais de pasto; a higienização do transporte de gado entre os diversos pastos; a educação sanitária dos produtores de gado, medidas que devem ser concretizadas pelas autoridades sanitárias desta Região Autónoma em parceria com as associações de lavradores do arquipélago.

9. Mas tal circunstância não poderá significar a postergação do imediato cumprimento das pertinentes disposições legais urbanísticas e de salubridade, ou o sacrifício do bem-estar e da qualidade de vida dos cidadãos afectados, para além de um período razoável, que no caso concreto certamente já decorreu.   É que, como afirma ESTEVES DE OLIVEIRA (1), o prolongamento no tempo de uma situação de comprovada ilegalidade fere o princípio da legalidade, uma vez que «quando a Administração tiver de reportar-se ao princípio da prossecução do interesse público, como parâmetro da sua actuação — ou seja, quando tal actuação não estiver vinculadamente fixada na própria lei — a sua “liberdade” ou discricionariedade para agir nesse sentido fica limitada pelo princípio do respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos, de outras pessoas com quem essa sua actuação brigue (…)» (2).


III
CONCLUSÕES


10. A constatação do funcionamento de um curral ou estábulo para gado bovino, na Rua Cónego Afonso da Costa Pereira, da freguesia da Maia, do concelho da Ribeira Grande, na proximidade de edifícios de habitação, com riscos prováveis para saúde pública e em prejuízo das condições de salubridade indispensáveis a um ambiente humano sadio, justificam a intervenção da Câmara Municipal visando impedir que o exercício de uma actividade individual susceptível de fazer perigar interesses gerais produza, amplie ou generalize os danos sociais que as leis procuram prevenir.


Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a V. Ex.ª::







Que a Câmara Municipal da Ribeira Grande interdite de imediato a utilização para fins pecuários do terreno propriedade do Senhor X, sito na Rua Cónego Afonso da Costa Pereira, freguesia da Maia, impedindo, designadamente, a estabulação de gado alfeiro, vitelos e, por vezes, vacas em período de parição, bem como a instalação de silos de milho e erva de silagem.


Permito-me lembrar a V. Ex.ª a circunstância da formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.


 O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 







Notas de rodapé:


(1) MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, PEDRO COSTA GONÇALVES, J. PACHECO DE AMORIM, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2ª Edição, pág. 86, Coimbra, Almedina, 1998.


(2) Idem, pág. 98.


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