RECOMENDAÇÃO N.º 13/A/2001
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente do Conselho de Administração do Instituto das Estradas de Portugal
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-2433/97
Data: 2001/07/31
Área: A2


Assunto: Queixa apresentada na Provedoria de Justiça. Direito a indemnização.


 


I
Fundamento da queixa apresentada


1. Foi dirigida ao meu antecessor, pelo Senhor AS, queixa contra a extinta Junta Autónoma das Estradas (JAE), em virtude de danos provocados na sua habitação pelos trabalhos de construção da via rápida IC1/IP6.


Concretamente, a circulação de máquinas pesadas, a movimentação de terras, construção de aterros, rebentamento de rochas, terão danificado, nomeadamente, a pintura das paredes, abrindo fendas, destruindo parte dos azulejos aí existentes.


2. Simultaneamente, e como consequência do aterro construído na estrada Óbidos-Capeleira, a cerca de 40/50 metros da casa do queixoso, desaguam no respectivo logradouro águas das chuvas, sendo certo que as pedras soltas existentes no respectivo aterro oferecem o risco de aí se precipitarem, podendo ocasionar danos físicos e materiais graves.


3. Após sucessivos avisos, em 1993 e 1994, aos responsáveis pela obra, pelos danos que se estavam a produzir, o queixoso apresentou reclamação escrita junto dos serviços da JAE – Direcção de Leiria, e Direcção de Fiscalização, em 9 de Setembro de 1994, 9 de Janeiro de 1996 e 20 de Janeiro de 1997.


4. Apenas em 24 de Janeiro de 1997 a JAE respondeu, para declinar qualquer responsabilidade pelos prejuízos sofridos pelo queixoso, remetendo-o para as firmas construtoras.


5. A firma adjudicatária – MOTA & COMPANHIA, SA -, após afirmar desconhecer se os danos na casa do queixoso resultaram na realidade de “defeito de construção”, afirma que a responsabilidade é da JAE, porquanto, limitando-se a obedecer rigorosamente às instruções do Dono da Obra, ao respectivo Caderno de Encargos, Projectos e demais elementos integrantes do Contrato de Empreitada, os motivos dos prejuízos resultam “da própria natureza ou concepção da obra”.


6. Solicitada a apreciação da JAE sobre os factos descritos, e após várias insistências, foi comunicado ao meu antecessor que:








– a indemnização pelos danos causados é da responsabilidade da firma adjudicatária da empreitada;
– está em curso um “inquérito administrativo” sobre a reclamação, “que será encaminhada para o adjudicatário o qual informará os serviços se serão da sua responsabilidade a reclamação apresentada.”



7. Entretanto, e mais recentemente, fui informado de que o referido inquérito administrativo se encontrava concluído, não tendo sido assumidas responsabilidades por qualquer das entidades envolvidas (dono da obra, adjudicatário e seguradoras que garantiram as cauções da empreitada) e tendo o reclamante sido “notificado para interpor, querendo, a competente acção judicial”.


8. Foi-me igualmente comunicado por esse Instituto que, não tendo sido feita prova da interposição de tal acção, se procedeu ao arquivamento da reclamação, com a consequente extinção das cauções da empreitada.


II
O Direito


9. Volvidos seis anos sobre a entrada em vigor do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 442/91, de 15 de Novembro, a posição assumida pela JAE em Dezembro de 1997, no que concerne ao caso em análise, consubstanciava-se, em termos de relacionamento com o cidadão lesado, numa clara violação dos princípios legal e constitucionalmente consagrados da justiça, da imparcialidade, da protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, da boa-fé, da colaboração da Administração com os particulares e da desburocratização e da eficiência (vd arts. 266º a 268º da Constituição, e 3º a 12º do Código citado).








9.1. O princípio da legalidade, na sua vertente orientada para a prossecução do interesse público, impõe o cumprimento das normas legais procedimentais que, em última análise, visam proteger direitos e interesses constitucionalmente protegidos.


Por esse facto há que respeitar a oficiosidade da instrução e direcção dos procedimentos iniciados mediante reclamações dos cidadãos (realizando exames, inspecções, perícias, necessárias a uma decisão); o cumprimento de prazos legais (nomeadamente de decisão e resposta); a fundamentação de facto e de direito dos actos praticados; a desburocratização e celeridade dos procedimentos; etc., etc..


9.2. O cumprimento de tais normas, também no relacionamento com outros órgãos do Estado, é essencial para a protecção de direitos e interesses, como se verificou “in casu”; se, enquanto dono da obra, a JAE tivesse intervido aquando das reclamações apresentadas pelo cidadão, decerto que muitos dos danos alegados não se teriam verificado.


9.3. Do mesmo modo, decorridos anos sobre a reclamação apresentada junto da JAE, não só causa estranheza que se afirmasse, em Dezembro de 1997, que ainda se encontrava em curso um “inquérito administrativo” relativo às queixas, que viriam a ser encaminhadas “para o adjudicatário o qual informará se as mesmas serão da sua responsabilidade”(!), como, por outro lado, a responsabilidade dos órgãos e seus titulares, por danos materiais e pessoais que venham a resultar do perigo já descrito, acarretará um juízo de reprovabilidade social e ética (culpa) acrescido.



10. Ademais, conforme melhor explicarei, existem obrigações que impendem sobre o empreiteiro na realização da obra, e deveres de fiscalização e direcção do dono da obra, que, a terem sido exercidos diligentemente, poderiam, não só ter obviado a parte dos danos, como ter conduzido ao seu efectivo e rápido ressarcimento.








10.1. E tal é tanto mais certo quanto é verdade que, segundo afirmado pelos empreiteiros, atenta a posição da casa do reclamante, os danos sofridos decorrem directamente da própria natureza ou concepção da obra, bem como do cumprimento das respectivas normas contratuais (cadernos de encargos, projectos, contrato de empreitada) e das instruções do dono da obra.



11. Decorre do disposto no art. 25º do Decreto-Lei nº 235/86, de 18 de Agosto (em vigor na altura em que ocorreram os primeiros danos e entretanto revogado pelo Decreto-Lei nº 405/93, de 10 de Dezembro, o qual, por sua vez, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março), que aprovou o Regime de Empreitadas de Obras Públicas, que constitui obrigação do empreiteiro a execução dos trabalhos necessários para garantir a segurança da obra e do público em geral, evitar danos nos prédios vizinhos e satisfazer os regulamentos de segurança e de polícia das vias públicas.








11.1. Inobservando a disposição legal citada, não executando os trabalhos necessários para evitar a deterioração dos prédios do queixoso, vizinho à obra em construção, apesar de insistentemente avisado, cometeu o empreiteiro um acto ilícito e culposo susceptível de determinar a obrigação de indemnizar.


11.2. Tem aqui integral aplicação o regime jurídico da responsabilidade constante do art. 500º do Código Civil: para que se verifique responsabilidade objectiva do comitente, impõe-se, para além da existência de um facto danoso, praticado pelo comissário no exercício da função confiada, a existência de uma relação de comissão, a qual se caracteriza pela verificação de um vínculo de autoridade e subordinação respectivas.


11.3. Se é certo que não existe tal relação nos contratos civis de empreitada, por força da autonomia com que o empreiteiro realiza a obra acordada (v., entre muitos outros, Acs. RP de 21.01.77, BMJ, 265º, 280; STJ de 30.01.79, BMJ, 283º, 301; ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Coimbra, 4ª ed., pp. 404 e segs.; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Almedina, 6ª ed., pp. 608 e segs.), o mesmo não pode ser aceite para o contrato administrativo de empreitada de obras públicas.


11.4. Na realidade, tratando-se de um contrato administrativo (art. 178º do CPA), possui características relevantes que o diferenciam dos contratos civis (v. FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, 1985, Vol. III, pp. 424 e segs.), atento o interesse público que visa prosseguir (também ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, Almedina, 1984, 2ª Reimp., pp. 646).


11.5. A autoridade administrativa possuía no presente caso um verdadeiro poder de direcção sobre o modo de execução das prestações (v. art. 157º do citado Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, em especial nas als. n) e o)), que, ultrapassando a mera fiscalização, traduz um verdadeiro “acompanhamento directivo” (MARQUES VIDAL e JOSÉ CORREIA MARQUES, Empreitada e Fornecimento de Obras Públicas, 1982, Almedina, p. 29).


11.6. Nas palavras de ANDRADE da SILVA, “os poderes de direcção, de controle e de vigilância pertencem em exclusivo ao dono da obra, como poderes originários e inalienáveis, consequência da natureza pública do fim que se pretende realizar”; e, acrescenta, “O empreiteiro é um colaborador, mas completamente estranho à direcção propriamente dita. Esta revela-se particularmente (…) na emanação de ordens, no prosseguimento regular dos trabalhos, no controle sobre o aspecto técnico dos materiais, dos métodos de trabalho (…), resolução de situações imprevistas” (anotação ao art. 157º do Regime Jurídico das Empreitadas de Obras Públicas, Almedina, 3ª ed., 1992, p. 408).



12. Tais razões levam-me a concluir pela existência de uma relação de subordinação no contrato de empreitada de obras públicas, possibilitando a aplicação do regime jurídico da responsabilidade objectiva do comitente relativamente aos actos culposos praticados pelo comissário no exercício do mandato.








12.1. Certo é, no entanto, que alicerçando-se a responsabilidade do comitente na vantagem retirada da actividade geradora da comissão (prescindindo-se da sua culpa), este detém o direito de exigir do comissário tudo o que pagou (excepto se se demonstrar que existiu igualmente culpa da sua parte – art. 500º, nº 3, do Código Civil), princípio de responsabilização que se deve aliás inserir nas relações contratuais entre a Administração e os empreiteiros, devendo a Administração exercer efectivamente o referido direito, sempre que tal se justifique.



13. Por fim, não posso também deixar de referir que, tendo o reclamante agido com diligência no âmbito do inquérito administrativo que correu termos na Câmara Municipal de Óbidos, com respeito pelo prazo estabelecido para a apresentação de reclamação, não deixa igualmente de ser verdade, na minha óptica, que o contrário não implicaria de forma alguma a preclusão do direito ao recebimento de uma indemnização, o mesmo sendo válido no que concerne à questão da falta de interposição de acção judicial.








13.1. Com efeito, não vislumbro em que medida é que a não interposição de acção judicial poderá neste caso funcionar como causa de exclusão da responsabilidade da extinta JAE, responsabilidade essa claramente alicerçada nos fundamentos atrás aduzidos, cuja validade, na minha opinião, se apresenta por completo independente do accionamento de meios judiciais.










Pelo exposto, Senhor Presidente do Conselho de Administração do Instituto das Estradas de Portugal, é meu dever RECOMENDAR a V.Exa., na qualidade de responsável máximo pela entidade que, nos termos do disposto no Decreto-Lei nº 237/99, de 25 de Junho, assumiu nesta matéria as obrigações da extinta JAE, que, verificados que estão os requisitos da responsabilidade civil extracontratual, seja o presente caso decidido, de forma célere e justa, no sentido de ressarcir o reclamante de todos os prejuízos de há muito suportados pela construção das vias referidas.


Creio, aliás, Senhor Presidente do Conselho de Administração do Instituto das Estradas de Portugal, que a formulação desta Recomendação se torna tanto mais imperiosa quanto mais evidente se me afigura ter o Senhor AS visto neste caso os seus mais elementares direitos por completo desprotegidos em face dos vários poderes aqui envolvidos (a extinta JAE, numa fase inicial, substituída posteriormente pelo IEP, o empreiteiro, as seguradoras), os quais, como bem o demonstram os documentos que anexo, sempre se tentaram, ao longo de todo este processo, eximir das suas responsabilidades, imputando-as a outras entidades, e assumindo, por vezes, e de forma indisfarçável, posições meramente dilatórias.



É, pois, minha profunda convicção que, ainda que o lapso de tempo entretanto decorrido possa em certa medida dificultar o apuramento exacto das responsabilidades e dos danos, o sentido de justiça pelo qual V. Exa. certamente sempre procurará fazer acompanhar as suas decisões o conduzirá ao acatamento desta Recomendação, o qual, nos termos do disposto no Artigo 38º, nº 2, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, me deverá ser comunicado (ou, porventura, o fundamento detalhado do não acatamento) no prazo de sessenta dias.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues