RECOMENDAÇÃO n.º 8/A/2006
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Presidente da Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida
Proc.º: R-4458/05
Data: 20-09-2006
Área: UP


Assunto: Praia do Creiro, Parque Natural da Arrábida; Acesso a portadores de deficiência.



I.
Introdução



O Provedor de Justiça recebeu uma reclamação relativamente aos termos em que é permitido o acesso automóvel à praia do Creiro, no Parque Natural da Arrábida, decorrendo a presente instrução no interesse das pessoas com mobilidade condicionada potencialmente interessadas em frequentar aquele local.



Segundo a queixa, na mencionada praia do Creiro não é permitido, regra geral, o estacionamento automóvel junto ao areal. Aliás, existe mesmo uma barreira física (consubstanciada em um cordão de ferro) que impede o trânsito de veículos até à zona de areia, apesar de não obstruir a passagem de pessoas. Assim, os carros devem ser deixados nos lugares de estacionamento devidamente disponibilizados junto à estrada, fazendo as pessoas a pé o restante percurso até ao areal, e à praia propriamente dita, por um caminho com uma acentuada inclinação.



Como é bom de ver, o ordenamento do trânsito no acesso à referida praia também impede, em princípio, a passagem dos veículos automóveis das pessoas com dificuldades de locomoção, ou que são utilizados para transportar pessoas com limitações físicas, ou outras. Para obstar a tal problema, aqueles a quem compete proceder à fiscalização do uso do parque de estacionamento vão permitindo que, em tais situações, os carros passem até ao areal, apenas para que deixem os passageiros, mas impõem a obrigação de os veículos retornarem de imediato aos lugares de estacionamento afastados da praia.



Acontece, porém, que – mesmo aceitando que uma pessoa com mobilidade condicionada possa ser conduzida, por um terceiro, até ao areal (ficando depois a aguardar que o condutor estacione a viatura e regresse) -, duas circunstâncias há em que é absolutamente forçoso permitir que os carros fiquem estacionados junto ao areal, sob pena de se estar a interditar a frequência da praia a um grupo determinado de cidadãos. Aquelas situações verificam-se quando:




– o portador de deficiência motora é o próprio condutor do carro;
– o condutor não é portador de deficiência mas está a acompanhar uma pessoa portadora de deficiência mental, ou outra, que não possa ser deixada sem acompanhamento permanente.


A presente Recomendação é motivada pela circunstância da proibição de estacionamento junto ao areal significar, nas condições actuais, que as pessoas portadoras de deficiência motora que conduzem o seu próprio carro, ou as pessoas portadoras de deficiência que não podem ser deixadas sem acompanhamento junto ao areal enquanto os condutores vão estacionar os veículos, estão, pura e simplesmente, impedidos de frequentar a praia do Creiro.



Mas a Recomendação funda-se, também e sobretudo, na observação propiciada pela visita de inspecção à praia do Creiro e respectiva zona envolvente, levada a efeito no dia 21 de Junho de 2006, na medida em que ela comprovou – como adiante se testemunhará – que a inflexibilidade manifestada relativamente à condição dos portadores de deficiência não tem paralelo em dezenas de outras situações em que é permitido o desregrado estacionamento junto ao areal, com a óbvia conivência das pessoas a quem cabe disciplinar o acesso à área em causa, e com a omissão de fiscalização de quem está a ela legalmente obrigado, em particular dos próprios Serviços do Parque Natural da Arrábida. 


II.
Diligências instrutórias



Cumprindo o disposto no artigo 34.º do Estatuto do Provedor de Justiça (1), cuidou-se de ouvir tanto a Comissão Natural da Arrábida como a Santa Casa da Misericórdia de Azeitão.



Com efeito, na sequência do recebimento da reclamação neste órgão do Estado, e da abertura do competente processo, no dia 27 de Outubro de 2005, a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida foi logo ouvida, a coberto do ofício n.º 18822, de 31 de Outubro de 2005.



Na resposta, prestada com data de 9 de Janeiro de 2006 (e já depois de dois ofícios de insistência), dava V. Ex.a conta de que a gestão do parque de estacionamento do Creiro estava atribuída à Santa Casa de Misericórdia de Azeitão, ao abrigo de protocolo de colaboração celebrado, em 9 de Maio de 1996, com o Instituto da Conservação da Natureza.



Acrescentava V. Ex.a, ainda, que «(n)a Cláusula Sexta do protocolo foi fixada a excepção do acesso de cidadãos portadores de deficiência, no entanto não existindo lugares de estacionamento na praia do Creiro, o acesso concretiza-se mediante a permissão de circulação de veículo até ao areal (o que não é permitido aos demais utilizadores que ficam obrigados a percorrer o caminho que dista do estacionamento até à referida praia, pelo seu pé) e depois estaciona nos lugares de estacionamento existentes» (vide ofício n.º 0029, desse Parque Natural).



Atendendo à informação prestada por V. Ex.a, e porquanto a referida cláusula sexta do protocolo parecia não acautelar as eventualidades do portador de deficiência ser o próprio condutor do carro, ou do passageiro não poder ser deixado sem acompanhamento, foi consultada a Santa Casa de Misericórdia de Azeitão (através do ofício n.º 885, de 16 de Janeiro) sobre a susceptibilidade daquelas duas situações serem resolvidas, designadamente mediante instruções aos funcionários da Santa Casa que asseguram a vigilância do parque de estacionamento, para que permitissem a passagem e o estacionamento nas duas situações atrás mencionadas. Importa deixar claro que, em face das informações até então recolhidas, pareceu a este órgão do Estado que a resolução da situação reclamada seria de fácil concretização, bastando que passasse a ser autorizada a passagem e o estacionamento de veículos naqueles dois casos. Com efeito, não se vislumbrava, então, que os portadores de deficiência frequentadores da praia do Creiro, condutores do seu próprio carro ou passageiros, fossem em número tal, ou com um comportamento tal, que configurassem um problema semelhante ao que veio a ser suscitado por V. Ex.a.



A resposta da Santa Casa de Misericórdia de Azeitão, contida no ofício ref.ª 099/06, de 16 de Fevereiro de 2006, afirmava que o estabelecimento das regras de funcionamento do parque de estacionamento era da «exclusiva competência do Instituto da Conservação da Natureza – Parque Natural da Arrábida» pelo que, ainda no cumprimento do dever de audição das entidades visadas, a questão tornou a ser exposta à Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida.


A coberto do ofício n.º 411, de 29 de Março de 2006, V. Ex.a, reiterando informações anteriores sobre a classificação da praia em causa, cuidou de explicitar o que me permito transcrever a seguir: «(…)


3. Da análise da planta do plano de praia do Portinho da Arrábida pode depreender-se a existência de um percurso pedonal que liga a área de estacionamento mais próxima do areal ao próprio areal, sem que existam condições, sem afectação dos valores naturais em presença, de aí ser criada uma outra área de estacionamento para as situações apontadas. Estas condicionantes, designadamente, ” Os acessos às praias marítimas nas áreas naturais são permitidos através das vias existentes, que terminam em áreas de estacionamento ou de retorno (…)” (art. 11º, nº 2, al. b) do POOC) têm por objectivo, é certo, a garantia de segurança e conforto de utilização das praias pelos utentes, desde que assegurada a protecção da integridade biofísica do espaço (art. 25º, nº 4, do POOC);


4. Face ao exposto, e dado não estar prevista a criação de áreas de estacionamento no referido plano de praia, mais próxima do areal, que resolvesse a questão suscitada, tal desiderato colidiria com o POOC em vigor. No entanto e à semelhança de situações idênticas às referidas, pondera-se a autorização excepcional, de acordo com o princípio da equidade, da circulação das viaturas conduzidas por pessoa portadora de deficiência ou quando o condutor não seja portador de deficiência mas conduza uma pessoa portadora de deficiência mental que não possa ser deixada sem acompanhamento, ou outras igualmente justificadas, até à zona do areal com imediato retorno e estacionamento da viatura no local definido para o efeito, pelo facto de não ser possível definir uma área de estacionamento especial junto ao areal, dada a sua reduzida área».


Chegados a este ponto da instrução, entendeu a Provedoria de Justiça ser pertinente a realização de uma visita de inspecção ao local por forma, por um lado, a verificar as condições físicas (naturais e edificadas) da praia do Creiro e da sua zona envolvente, por outro lado, a equacionar os riscos para a degradação dos valores naturais potenciados pela pretendida autorização de estacionamento de veículos de pessoas deficientes e/ou que transportem pessoas com deficiência que não possam ser deixadas desacompanhadas e, finalmente, a ponderar as soluções possíveis para dirimir a questão em apreço.



A efectivação da visita em causa foi previamente concertada com a Comissão Directiva, tendo sido acordado, inclusive, que ela iniciar-se-ia nas instalações do Parque Natural, e seria acompanhada por V. Ex.a, como veio a acontecer. 


III.
Deslocação à praia do Creiro


A diligência de inspecção foi assegurada ao abrigo das disposições contidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º, e no artigo 28.º, ambas do Estatuto do Provedor de Justiça, e, como ficou dito, foi previamente comunicada a V. Ex.a.


Em síntese, eis o que foi possível observar.



O acesso à praia do Creiro faz-se por uma estrada íngreme, asfaltada (em cujo lado direito se distribuem algumas dezenas de lugares de estacionamento), e que desemboca numa rotunda.



O local apresenta um amplo espaço para a circulação de viaturas, inclusive para que possam fazer inversão do sentido da marcha sem quaisquer problemas especiais. Nos bordos do caminho acresce ainda uma área vasta, igualmente não asfaltada, onde ocorrem árvores e arbustos diversos. Pese embora ser patente que o espaço tem vindo a sofrer alguma intervenção humana, a área à volta do caminho não está nem cuidada nem limpa.



Na já mencionada rotunda, e na direcção do mar, está colocado um cartaz onde se pode ler a seguinte advertência: “’Proibida a Circulação de Veículos Motorizados nas Praias e Dunas’ – punível com a coima de 249,40€ a 2493,99€ artigo 1.º artigo 4.º do DL 218/95 de 26 de Agosto”. Lembre-se que o Decreto-Lei n.º 218/95 proíbe a circulação de veículos automóveis e ciclomotores nas praias, dunas, falésias e reservas integrais pertencentes ao domínio público ou a áreas classificadas nos termos do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, bem como nas zonas para o efeito destinadas nos plano de ordenamento da orla costeira.



No lado nascente da rotunda pode aceder-se, também por um caminho de terra batida, a um descampado onde foi edificado um barracão, e junto do qual estava estacionado um outro veículo automóvel. Também aqui o espaço disponível é imenso e, mesmo para além da mencionada edificação, é notório que a restante área em causa também não está no seu estado original.



No lado poente da rotunda, existe um estabelecimento de restauração, de dimensões consideráveis, composto por um conjunto de estruturas aparentemente edificadas em materiais e épocas distintas (o estado de conservação de algumas partes era manifestamente melhor do que outras).



O espaço das traseiras do estabelecimento era utilizado como depósito de materiais de apoio, como mesas e cadeiras de plástico, e guarda-sóis.



A dimensão do estabelecimento indiciava uma capacidade relevante, ideia que ficou reforçada pela circunstância do bar/restaurante dispor de duas frentes de acesso ao público – uma virada para o mar e, outra, para a rotunda. Ainda nas traseiras do estabelecimento, mas a alguma distância e por debaixo das árvores, estavam estacionados automóveis.



Da rotunda, e ainda para poente, parte um caminho ao longo do areal e por uma extensão de várias centenas de metros, que dá serventia a diversos estabelecimentos, todos de consideráveis dimensões.



Para além do espaço no interior das edificações, os restaurantes e bares dispunham de uma, ou mais, esplanadas, interiores e/ou exteriores. Nestas últimas situações, foram observados casos em que o solo de areia havia sido substituído por cimento ou pavimento cerâmico.



Junto a cada um dos mencionados estabelecimentos estavam estacionados veículos (automóveis e motos), sendo imperioso destacar, contudo, que nenhum dos veículos observados estava a ser utilizado para cargas ou descargas.



A mais gravosa situação de desleixo, em termos de «afectação dos valores naturais em presença» (fazendo uso da expressão contida no ponto 3 do ofício n.º 411 que V. Ex.a me remeteu em 20 de Março de 2006), foi observada exactamente no caminho que se estende ao logo do areal, desde a rotunda até ao mais afastado dos estabelecimentos.



Com efeito, são incontáveis as situações de deposição de entulhos, a par de casos de abandono de embarcações de recreio inutilizadas, ou de outros detritos de proveniência e natureza diversas.



Pese embora terem sido observadas outras situações igualmente susceptíveis de pôr em crise a protecção da integridade biofísica do espaço envolvente à praia do Creiro, os exemplos aqui deixados são suficientes – estou em crer – para ilustrar as condições actuais daquela «praia que [alegadamente] não se encontra sujeita à influência directa dos núcleos urbanos e está associada a sistemas naturais sensíveis» [artigo 52.º, n.º 1, alínea c), do POOC (2)]. 


IV.
Exposição de motivos



§1.
A afectação de um espaço determinado para o estacionamento de veículos de portadores de deficiência



Da argumentação apresentada pela Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida ao longo da instrução perpassa a ideia de que o único valor proeminente na presente situação é o da salvaguarda de recursos e valores naturais e a protecção dos sistemas indispensáveis à utilização sustentável da praia do Creiro, «visando, em especial, (…) [a sua] valorização e qualificação (…) por motivos ambientais» (artigo 2.º do POOC).



De facto, parece ser esse o sentido das diversas explicações contidas nos dois ofícios em que V. Ex.a se dignou responder às interpelações deste órgão do Estado, uma vez que são unicamente invocadas disposições do POOC, e sempre em sentido desfavorável à pretensão visada na presente instrução.



Contudo, como explicita o artigo 66.º, da Constituição, «o direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado» deve ser assegurado «no quadro de um desenvolvimento sustentável» e deve permitir compatibilizar o «desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida».



Por outro lado, resulta do artigo 71.º, da Constituição (3), o direito, reconhecido a todos e a cada um dos cidadãos portadores de deficiência, de gozarem plenamente os direitos para os quais não se encontrem incapacitados – direito que é complementado com a expectativa de que o Estado desenvolva acções positivas de integração.



Aceitando a tese de V. Ex.a, estar-se-ia necessariamente perante uma situação de colisão de direitos que deveria ser resolvida nos termos previstos no artigo 335.º do Código Civil (4), até na medida em que tanto o direito ao ambiente como os direitos dos cidadãos portadores de deficiência assumem natureza análoga à dos direitos fundamentais.



Contudo, como tem sustentado o Supremo Tribunal de Justiça, resulta «quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o respectivo exercício simultâneo e integral» (5).


Ora, como tem vindo a defender-se ao longo da instrução, entende a Provedoria de Justiça que a situação aqui tratada seria facilmente resolvida com respeito pelo espírito, e pela letra, do POOC – designadamente do disposto nas disposições contidas no n.º 2 do artigo 11.º e no artigo 25.º -, afectando-se um espaço determinado para a utilização exclusiva de alguns veículos de pessoas com deficiência, ou utilizados por elas.



Tal é perfeitamente possível, em termos físicos, como resultou abundantemente comprovado na visita de inspecção acima relatada.



Mas tal é também juridicamente viável.



De facto, dispõe a primeira das normas acima referidas que «(o) acesso rodoviário à orla costeira (…) fica sujeito às seguintes regras (…):




a) Fora do solo urbano não é permitida a abertura de novos acessos rodoviários;


b) Os acessos existentes não podem ser ampliados sobre as praias, dunas, arribas e áreas húmidas;


c) No solo urbano não é permitida a construção de novas vias marginais;


d) Os acessos às praias marítimas nas áreas naturais são permitidos através das vias existentes, que terminam em áreas de estacionamento ou de retorno, à excepção dos considerados imprescindíveis (sublinhado nosso) e quando devidamente justificados no âmbito dos planos de praia e dos planos de pormenor em curso no âmbito do Programa Polis;


e) As vias de acesso à linha de costa e os parques de estacionamento associados a que se refere a alínea anterior são delimitados fisicamente, impedindo a utilização de caminhos de acesso alternativos, mesmo por veículos de todo o terreno;


(…) ».


Daqui resulta que a criação de lugares de estacionamento para viaturas de pessoas portadoras de deficiência junto ao areal da praia do Creiro é permitida – não só na medida em que as vias de acesso já existem, e o espaço já é utilizado -, mas também em consequência da imprescindibilidade daquela solução.



De facto, não há alternativa possível para que as pessoas portadoras de deficiência motora que conduzam o seu próprio carro, ou as pessoas portadoras de deficiência que não podem ser deixadas sem acompanhamento junto ao areal enquanto os condutores vão estacionar os veículos, frequentem a praia do Creiro.



Já o n.º 4 do artigo 25.º do POOC (que V. Ex.a igualmente invocou para fundamentar a inviabilidade da resolução do problema exposto) dispõe, referindo-se às praias, que «(o)s condicionamentos a que estão sujeitas as praias marítimas têm por objectivos:




a) A protecção da integridade biofísica do espaço;
b) A garantia da liberdade de utilização destes espaços, em igualdade de condições para todos os utentes
(sublinhado nosso);
c) A compatibilização de usos;
d) A garantia de segurança e conforto de utilização das praias pelos utentes
».


Ora, a criação de alguns lugares de estacionamento visa exactamente garantir que os cidadãos portadores de deficiência possam utilizar a praia do Creiro em igualdade de condições com os demais utentes, valor que é amparado pelo POOC.



Por outro lado, e como se viu, não é necessária a abertura de nenhum novo caminho, nem a afectação de nenhuma área até agora imaculada, pelo que não haveria, sequer, um conflito de direitos a dirimir.



Em face do que fica exposto, não se vê como pode a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida estribar nas citadas disposições do POOC uma posição contrária à autorização de estacionamento das viaturas das pessoas portadoras de deficiência motora que conduzam o seu próprio carro, ou das pessoas que conduzam portadores de deficiência que não possam ser deixadas sem acompanhamento. 


§2.
A eventual colisão de direitos



Uma vez que a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida não resolveu o problema, acolhendo a razoável sugestão da Provedoria de Justiça, poder-se-ia conceder, hipoteticamente, a existência de uma situação de efectiva colisão de direitos. Contudo, mesmo naquela eventualidade, sempre haveria que «averiguar se a situação de conflito emerge de direitos iguais ou da mesma espécie ou se, ao invés, esses direitos são desiguais ou de espécie diferente (…)», não esquecendo que «a definição da superioridade de um direito em relação a outro deve ser feita em concreto, pela ponderação dos interesses que cada titular visa atingir» (6).



Caberia, então, perguntar: de que forma, e com que intensidade, poderiam algumas viaturas de pessoas portadoras de deficiência afectar a protecção da integridade biofísica da praia do Creiro que não esteja já posta em crise pela intensiva utilização que actualmente ocorre? A resposta, estou certo, apontaria para a quase irrelevância de um eventual dano ambiental causado pelos carros dos portadores de deficiência no contexto actual da praia do Creiro.



Neste aspecto, a deslocação ao local foi, uma vez mais, muito elucidativa.



Na verdade, em face do que foi observado na visita acima descrita, não se compreende – nem se aceita, tão pouco – que V. Ex.a alegue a impossibilidade de abertura de novas vias ou de criação de novas áreas de estacionamento, na medida em que as vias já existem (e são abundantemente utilizadas, como ficou fotograficamente registado), e as zonas de estacionamento já são usadas (e sem nenhum critério ou disciplina).



Não serão alguns poucos carros – dos muito poucos cidadãos com deficiência que, pelos seus próprios meios ou com ajuda de terceiros, estarão fisicamente aptos a percorrer o longo areal para fruir dos benefícios da praia na época balnear – que afectarão os valores naturais em presença, ou ferirão a integridade biofísica do espaço.



Aliás, ao observar o estado de verdadeiro desleixo daquela área do Parque Natural da Arrábida (apenas explicável por uma completa omissão fiscalizadora na praia do Creiro) dificilmente se compreende a súbita preocupação manifestada por V. Ex.a quanto aos efeitos nefastos da presença dos veículos das pessoas portadoras de deficiência.



§3.
Normas técnicas para melhoria da acessibilidade das pessoas com mobilidade condicionada



Importa, por outro lado, não perder de vista que as facilidades já actualmente disponibilizadas para os cidadãos portadores de deficiência, designadamente para estacionamento dos respectivos veículos automóveis, incumprem totalmente as normas técnicas para melhoria da acessibilidade das pessoas com mobilidade condicionada (adiante, Normas técnicas), aprovadas em anexo ao Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de Agosto – como igualmente já incumpria as normas que por este diploma foram revogadas (7).



Na verdade, não pode o Parque Natural da Arrábida desprezar o facto daquelas Normas técnicas terem aplicação tanto nos parques de estacionamento de veículos automóveis [artigo 2.º, n.º 2, alínea i), do Decreto-Lei n.º 163/2006] como, também, nas praias [idem, alínea p)], nem a circunstância das próprias condições naturais de acesso à praia do Creiro criarem dificuldades – muitas das quais absolutamente intransponíveis – entre a zona de parqueamento automóvel e o areal, designadamente ao nível do percurso acessível (secção 1.1 do capítulo 1), dos passeios e caminhos de peões (secção 1.2) e das rampas na via pública (secção 1.5).



Note-se que, como foi constatado presencialmente, não existem acessos seguros, contínuos e coerentes, designadamente para pessoas em cadeiras de rodas, sendo que uma das principais questões que aqui releva é exactamente, e como se compreende, a inclinação do percurso que se estende desde a actual zona de estacionamento até ao areal, o que faz do caminho uma verdadeira rampa (8).



§4.
A proibição e a punição da discriminação em razão da deficiência


Em data recente, e já depois da realização da visita de inspecção, foi publicado o diploma que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência, cujo regime importa aqui aflorar.



Com efeito, a Lei n.º 46/2006, de 28 de Agosto, «tem por objecto prevenir e proibir a discriminação, directa ou indirecta, em razão da deficiência, sob todas as suas formas, e sancionar a prática de actos que se traduzam na violação de quaisquer direitos fundamentais, ou na recusa ou condicionamento do exercício de quaisquer direitos económicos, sociais, culturais ou outros, por quaisquer pessoas, em razão de uma qualquer deficiência» (artigo 1.º, n.º 1), e vincula todas as pessoas singulares e colectivas, públicas ou privadas (artigo 2.º, n.º 1).



Por outro lado, como dispõe o artigo 4.º do mesmo diploma, são tidas como práticas discriminatórias contra pessoas com deficiência as acções ou omissões, dolosas ou negligentes, que, em razão da deficiência, violem o princípio da igualdade «designadamente (…) a recusa ou a limitação de acesso ao meio edificado ou a locais públicos ou abertos ao público» [alínea e)].



Finalmente, adiante-se que, mesmo quando não ocorra um tratamento menos favorável de uma pessoa portadora de deficiência relativamente a outra pessoa em situação comparável (aquilo a que o Legislador chama de ‘discriminação directa’), pode verificar-se uma ‘discriminação indirecta’ que, nos termos do disposto no artigo 3.º, «ocorre sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra seja susceptível de colocar pessoas com deficiência numa posição de desvantagem comparativamente com outras pessoas, a não ser que essa disposição, critério ou prática seja objectivamente justificado por um fim legítimo e que os meios utilizados para o alcançar sejam adequados e necessários» [alínea b)].


Lembre-se que a prática de qualquer acto discriminatório constitui contra-ordenação, sem prejuízo da eventual responsabilidade civil que ao caso couber. 


V.
Conclusões



Ao não ter criado lugares de estacionamento para viaturas de pessoas portadoras de deficiência junto ao areal da praia do Creiro, mesmo após ter sido alertada para o problema dos cidadãos que não podem deslocar-se de cadeira de rodas do parque de estacionamento para a praia, ou que não podem ser deixados sem acompanhamento até que quem os conduza vá imobilizar o carro, a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida optou por situar a questão em um eventual conflito de direitos, e decidiu resolvê-lo mediante a cedência do interesse das pessoas com mobilidade condicionada em benefício do interesse da eventual preservação da integridade biofísica do espaço em causa.



Contudo, não existe nenhuma situação de conflito de direitos.



Desde logo, as condições de estacionamento actualmente disponibilizadas para as pessoas portadoras de deficiência não estão de acordo com as normas técnicas para melhoria da acessibilidade das pessoas com mobilidade condicionada, pelo não pode considerar-se que estejam garantidos os requisitos mínimos de acesso à praia.



Por outro lado, é perfeitamente possível, em termos físicos, afectar-se um espaço determinado junto ao areal para a utilização exclusiva de veículos conduzidos por pessoas com deficiência, ou utilizados por elas, sem que tal medida ponha em crise valores ambientais relevantes que, actualmente, estejam salvaguardados.



Acresce, ainda, que as disposições contidas no n.º 2 do artigo 11.º e no artigo 25.º, do POOC, não seriam violadas por aquele intento, antes pelo contrário.



Avulta, finalmente, que, caso existisse um conflito de direitos, deveria prevalecer, no caso concreto que aqui nos ocupa, o interesse das pessoas portadoras de deficiência, uma vez que a criação de poucos lugares de estacionamento a eles destinados junto ao areal não seria susceptível de afectar a integridade biofísica do espaço, que actualmente está longe de ser devidamente preservada.



Se, apesar de permitir o generalizado acesso do público à praia do Creio, não criar lugares de estacionamento que cumpram as normas técnicas para melhoria da acessibilidade das pessoas com mobilidade condicionada e que viabilizem a frequência daquela zona balnear pelas pessoas com mobilidade condicionada que conduzam o seu próprio carro, e pelas pessoas que não podem ser deixadas sem acompanhamento junto ao areal enquanto os condutores vão estacionar os veículos, a Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida estará a actuar de forma discriminatória relativamente aos cidadãos portadores de deficiência.



VI.
Recomendação


Em face do que deixei exposto, e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a V. Ex.ª, Senhora Directora da Comissão Directiva do Parque Natural da Arrábida, que: 





sejam criados, junto ao areal da praia do Creiro, alguns lugares para estacionamento exclusivo de veículos:



(1) dos portadores de deficiência que conduzam o seu próprio carro;


(2) daqueles que, não sendo portadores de deficiência, acompanhem pessoas que não podem ser deixadas sem acompanhamento (designadamente em resultado de deficiência mental), ou que acompanhem portadores de deficiência que, de outra forma, não podem aceder à zona balnear.


Finalmente, permito-me chamar a atenção de V.Ex.a para a circunstância de, nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 38.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a presente recomendação não dispensar a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.



O Provedor de Justiça
H. Nascimento Rodrigues


 


Notas de rodapé:


(1) Aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 30/96, de 14 de Agosto, e pela Lei n.º 52-A/2005, de 10 de Outubro.
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(2) Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Sintra-Sado, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 86/2003, de 25 de Junho.
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(3) Que, para além de declarar que «os cidadãos portadores de deficiência física ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados» (n.º 1), assegura também que «o Estado obriga-se a realizar uma política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias (…)» (n.º 2).
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(4) Lembre-se que o artigo 335.º do Código Civil dispõe, no n.º 1, que «havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes» e que, de acordo com o n.º 2, «se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior».
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(5) Acórdão n.º 6366, de 2 de Maio de 2006, processo 6 A 636, cujo texto integral está disponível em http://www.dgsi/jstf.nsf/….
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(6) Acórdão da Relação de Évora, de 8 de Fevereiro de 2001, CJ, 2001, 1.º, p.267, cit. Abílio Neto, Código Civil Anotado, 14.ª Ed., 2004, Lisboa, p.309.
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(7) Aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 123/97, de 22 de Maio, e que estavam em vigor à data da visita.
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(8) Na medida em que «os troços de percursos pedonais com inclinação igual ou superior a 5% devem ser considerados rampas (…)» (ponto 4.7.6 da secção 4.7 – Pisos e seus revestimentos do capítulo 4 – Percurso acessível das Normas técnicas).
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