RECOMENDAÇÃO N.º 11/A/2006
(artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei nº9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Proc.º: P-24/02
Data: 21-09-2006
Área: A1


Assunto: Estabelecimentos de bebidas – salas de dança – Kremlin e Kapital – freguesia de Santos-o-Velho. 






(A)
Considerações preliminares


1. A presente intervenção da minha parte junto de Vossa Excelência reporta-se ao ilegal funcionamento dos estabelecimentos de bebidas, com salas de dança, denominados Kremlin e Kapital, sitos na freguesia de Santos-o-Velho, e cuja localização mais precisa se revela desnecessária, em face dos antecedentes da intervenção deste órgão do Estado junto do município de Lisboa e que remontam a 1992.


2. Com efeito, já o meu antecessor recomendara o encerramento destes dois estabelecimentos por se encontrarem abertos ao público sem a devida licença, a menos que pudessem considerar-se suficientes os alvarás sanitários deferidos segundo as revogadas Instruções da Portaria n.º 6.065, de 30 de Março de 1929 (1).


3. A questão essencial, que começara por dizer respeito à incomodidade imputada ao ruído excessivo causado aos moradores das Escadinhas da Praia, deu lugar, do nosso ponto de vista, à questão da mais elementar legalidade. Isto, porque, desocupados os edifícios contíguos pelos moradores, o ruído deixou de constituir motivo de queixa.


4. Mas não se trata da legalidade como simples cumprimento formal de prescrições nem tão-pouco da quebra da autoridade municipal no desempenho das atribuições de polícia administrativa. Trata-se, isso sim, dos interesses públicos que a legalidade encerra e que fazem toda a diferença entre um estabelecimento devidamente licenciado e outro que abre as suas portas indiferentemente.


5. São esses interesses públicos que justificam ter o legislador investido as câmaras municipais na fiscalização e controlo de algumas actividades, condicionando a uma licença o funcionamento de estabelecimentos que possam suscitar especiais riscos para a ordem e segurança públicas, para a salvaguarda dos direitos dos consumidores e, não menos importante, para o tratamento não discriminatório pelos poderes públicos de estabelecimentos concorrentes, sujeitos, por lei, aos mesmos requisitos técnicos e funcionais.




(B)
Da abertura ao público sem licença


6. Pela primeira vez, em 1989, as autoridades municipais de Lisboa determinaram o despejo da parte de uma edificação explorada como discoteca, com a denominação Kremlin.


7. Seria de supor que, ao cabo de dezassete anos, uma de duas situações se tivesse verificado: ou o encerramento (voluntário ou coercivo do estabelecimento) ou o seu licenciamento, depois de verificadas as condições próprias para o exercício da actividade.


8. Em 2006, contudo, nada de substancial foi alterado. O despejo sumário, ordenado ao abrigo do artigo 165.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, em 4.12.1989, jamais foi notificado ao responsável pela exploração do estabelecimento, facto que o privou de eficácia e justificou o arrastamento da situação. Desconhece-se porquê.


9. Por seu turno, o estabelecimento denominado Kapital, instalado na Av. 24 de Julho, porque compreendera a execução de várias obras de alteração sem licença municipal, motivaria, em 27.03.1995, uma intimação municipal para demolir parte dos trabalhos. Até hoje, nem a intimação foi cumprida pelo destinatário nem a Câmara Municipal de Lisboa se substituiu ao infractor, providenciando pela execução coerciva, a expensas deste.


10. Encontram-se a decorrer os procedimentos de legalização das obras levadas a cabo num e no outro estabelecimento, sabendo-se que apenas o projecto de arquitectura do segundo terá sido objecto de aprovação, já que o primeiro suscita reservas consideráveis do ponto de vista da estabilidade da edificação e, por conseguinte, da segurança de pessoas e bens.


11. Por efeito da verificação deste risco, o proprietário do estabelecimento Kremlin foi intimado a executar obras que devolvessem à edificação as condições estruturais de segurança.


12. Das três fracções utilizadas pelo estabelecimento só em relação a uma delas se fez prova da legitimidade possessória por parte da sociedade comercial que explora o estabelecimento, de modo que o Kremlin se mantém aberto ao público, como se o facto de não possuir licença de utilização e o facto de as condições de segurança estrutural da edificação se apresentassem, perante o interesse público como formalidades não essenciais a deixar de ter em conta.



(C)
Da segurança contra o risco de incêndio


13. A última vistoria ao estabelecimento Kapital por parte do Regimento de Sapadores Bombeiros teve lugar em 18.12.2000.


14. Ao tempo, foram assinaladas deficiências indubitavelmente preocupantes, nomeadamente, a omissão de diversos dispositivos de segurança e a falta de um estudo que compreendesse um plano de emergência. Em especial, o piso explorado na cobertura, em caso de sinistro, suscitava particular apreensão, no tocante à evacuação súbita, e continua a suscitar a quem se der ao trabalho de ler ou reler o auto.


15. Assim, o cumprimento das prescrições do Decreto Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro, aplicável por via do Decreto-Lei n.º 309/2002, também de 16 de Dezembro, constituía fonte de objecções, como, de igual modo, as questões de segurança privada que o Decreto-Lei n.º 263/2001, de 28 de Setembro, procurou salvaguardar.


16. Por seu turno, o denominado Kremlin foi fiscalizado, em 22.10.2002, contando a operação com a presença de especialistas do Departamento de Serviços Eléctricos e Mecânicos e do Regimento de Sapadores Bombeiros.


17. Encontradas múltiplas deficiências, seria proposta a sua correcção, nomeadamente, o encerramento de determinadas passagens. Nova vistoria, em 6.11.2002, permitiu dar por ultrapassadas algumas objecções, mas não todas. Refiro-me à certificação das portas corta-fogo.


18. De acordo com as informações que regular e insistentemente temos vindo a solicitar da Câmara Municipal de Lisboa, até ao termo do ano findo (2005) nenhuma outra vistoria tivera lugar.


19. Uma das questões mais relevantes, em nosso entender, prende-se com a lotação de ambos os estabelecimentos. Contudo, no parecer que o Regimento de Sapadores Bombeiros viria a produzir, em 28.05.2003, embora surjam objecções importantes em matéria de segurança contra o risco de incêndio, a lotação máxima não é definida.


20. A verificação das exigências técnicas e funcionais, neste domínio, depende, porém, da lotação dos estabelecimentos, como decorre do disposto, designadamente, nos artigos 7.º, 30.º, 50.º, 73.º, 74.º, 89.º, 119.º, 140.º, n.º 6, 141.º, 158.º, 160.º, 168.º, 195.º e 252.º, todos do citado Decreto Regulamentar n.º 34/95, de 16 de Dezembro.


21. Pergunto-me como pode afiançar-se o estado de segurança de um estabelecimento sem conhecer ao certo a sua lotação, quando este factor é determinante das maiores ou menores exigências contidas nas prescrições legais e regulamentares.


22. É certo que com a licença de utilização pode ser estipulada pelas câmaras municipais uma lotação inferior à calculada pelo requerente. Se o estabelecimento não preencher determinados requisitos poderá abrir ao público, embora com uma lotação inferior. Ora, o que sucede, neste caso, é que, precisamente, como falta a licença de utilização, nem sequer este controlo pôde ter lugar.


23. É importante referir, bem assim, que a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor empreendera, em 2003, um estudo criterioso de várias discotecas lisboetas, a respeito das suas condições de segurança, em especial, contra o risco de incêndio.


24. No que respeita ao estabelecimento Kapital, observaram os autores do estudo, para além de insuficiências várias no campo da evacuação de utentes, em caso de sinistro, que nenhum controlo do número de entradas era efectuado.


25. Particularmente perigosa apresentava-se uma passagem entre os dois os estabelecimentos – pelo interior de ambos – a qual, na eventualidade de evacuação dos utentes, poderia constituir ponto de atropelo.


26. Sabe-se que ulteriormente foram introduzidas inovações, no âmbito do procedimento de legalização, mas como o estabelecimento continua a não dispor de licença de utilização, ignora-se o alcance destas medidas para satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de segurança.


27. É significativo registar que a DECO, neste estudo, não contou com a colaboração da sociedade que explora o estabelecimento, ao contrário de outras congéneres. As suas observações resultam de visitas não identificadas ao local, durante o seu funcionamento.




(D)
Das condições de estabilidade estrutural da edificação


28. Por iniciativa deste órgão do Estado, teve lugar uma reunião de vários colaboradores meus com a Senhora Vereadora Eduarda Napoleão, em 3.10.2002. Ao tempo, foi-nos transmitido que, no piso superior ao da fracção em que é explorado o Kremlin fora instalada uma laje em betão que representava uma sobrecarga incomportável para a segurança de pessoas e bens.


29. Sossegara-me a determinação da Senhora Vereadora que, em 8.10.2002, viria a determinar «a interdição da ocupação dos pisos 2 e 3 do edifício sito no Pátio do Pinzaleiro, n.º 22 a n.º 24, ao abrigo do artigo 109.º, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, até ao deferimento do pedido de legalização e licenciamento das alterações a apresentar pelos proprietários, e a verificação, por parte dos serviços competentes da Câmara Municipal de Lisboa, da execução das obras necessárias para a reposição das condições de segurança estrutural daqueles edifícios».


30. Já previamente, em 4.10.2002, a Senhora Vereadora teria ordenado a interdição do local, mas, quatro dias depois, indicaria informalmente à Polícia Municipal, pelas 21,45 h, o não encerramento do estabelecimento de bebidas denominado Taska, sito nas imediações, e, no mais, viria a suspender o seu despacho, pelas 22,30 h, informada de que, no Kremlin «a parte nova que se situa sob a placa alvo do despacho já tinha sido encerrada voluntariamente» (2).


31. De novo, os proprietários seriam intimados, por despacho da Senhora Vereadora, de 30.10.2002, ao que retorquiria a RM Hotelaria e Similares, Lda., encontrarem-se executadas as obras de reposição, dispondo-se a franquear o local para nova vistoria (3).


32. Vale a pena recordar que já o precedente executivo municipal, através da Senhora Vereadora Margarida Magalhães, determinara em 23.07.2001, que a utilização do Kremlin fosse temporariamente interdita até ser aprovado o projecto de arquitectura relativo às inovações executadas no seu interior e emitida a licença de utilização.


33. Os fundamentos desta intimação não eram muito diferentes: deficiências estruturais na cobertura, abaulada junto do beirado, perigo para a integridade física dos utentes do estabelecimento, iminência de derrocada e de acidentes eléctricos, falta de licenciamento das obras de alteração executadas e ilicitude da continuada abertura ao público.


34. Mas, tal qual como um ano após, o despacho seria informalmente suspenso, por solicitação da Senhora Vereadora à Polícia Municipal de que não o fizesse cumprir (4).


35. Nada assevera, salvo a citada declaração, que o local tenha vindo a reunir as condições de estabilidade. Num ponto tão sensível para o interesse público, em especial, das centenas de consumidores que diariamente frequentam o local há-de reconhecer-se que a diligência usada pelas autoridades municipais se revela muito diminuta.


36. Em 16.04.2004, a Câmara Municipal de Lisboa, por via da Direcção Municipal de Actividades Económicas, admitia perdurar o risco: 



Ainda não foi ultrapassada a situação de perigo que determinou a interdição da ocupação dos pisos 2 e 3 do edifício, mantendo-se assim a interdição dos mesmos. Esta situação, uma vez que envolve, não só os proprietários, mas também arrendatário e subarrendatário, tem-se revelado complexa e de difícil resolução (5)


37. Pergunto-me por que motivo a complexa situação de litígio entre particulares – proprietário, arrendatário e subarrendatário – justifica contemplações por parte da autoridade municipal, dispondo para o efeito dos poderes de declaração e execução prévia dos seus actos, especialmente, quando está em causa a segurança de pessoas e bens.


38. Aconselharia a prudência que, de imediato, se providenciasse pela interdição do estabelecimento, relegando para os tribunais comuns a resolução do litígio que parece opor vários particulares sobre aspectos puramente patrimoniais a que o interesse público – porque superior – deveria ser alheio.


39. Ao invés, acordaram as partes com o município – assim reduzido no seu estatuto a uma das partes interessadas – na estipulação de um prazo de trinta dias para repor as condições de segurança.



(E)
Da última ordem de cessação de utilização e da sua suspensão sine die


40. Em 31.08.2005, a Senhora Vereadora Ana Sofia Bettencourt ordenaria o encerramento da discoteca Kremlin. Sem licença municipal e perdurando duvidosas as condições de segurança, esta decisão representava o culminar de um longo historial iniciado em 4.12.1989, em nome da lei e por conta do interesse público.


41. Mas logo em 20.09.2005, a imprensa noticiava o facto de, por despacho do Senhor Presidente da Câmara Municipal, ter sido suspensa a intimação (6).


42. Por isso, em 12.10.2005, dirigi-me a Vossa Excelência (7), solicitando esclarecimentos acerca da legalidade da exploração dos estabelecimentos Kremlin e Kapital e procurando confirmar as razões da suspensão. Tornei presentes, na mesma ocasião, as conclusões formuladas na Recomendação n.º60/A/1999, de 16 de Julho, e que o Provedor de Justiça nunca vira suficientemente refutadas.


43. Justifica-se transcrever parte da minha comunicação, reportando-me ao despacho da Senhora Vereadora: 



Tolerar a abertura ao público do referido estabelecimento – e embora em menor grau do seu congénere Kapital – constituía, de facto, um elemento de séria perturbação, comprometendo o município na responsabilidade por possíveis danos morais e patrimoniais que um incidente viesse a gerar.


O Provedor de Justiça – nem seria preciso dizê-lo – nada opõe ao funcionamento das discotecas citadas, contanto que estas cumpram os pertinentes requisitos legais e regulamentares, próprios da actividade, e que representam, não simplesmente a conformidade com exigências formais, mas o respeito por padrões médios de segurança e qualidade ambiental. 


44. Pudemos saber que a ordem de encerramento se louvara em informação técnica de 19.05.2005, concluindo que o alvará de licença sanitária – o qual, desde tempos imemoriais, se afirmava sustentar a abertura ao público – caducara com a execução de obras de alteração e de ampliação.


45. Admita-se que o estabelecimento dispusesse de alvará de licença sanitária, concedido segundo as Instruções aprovadas pela Portaria n.º 6.065, de 30 de Março de 1929.


46. Revogado este diploma regulamentar, no seu capítulo V, respeitante, justamente, ao funcionamento de empreendimentos turísticos e estabelecimentos de restauração e bebidas, o legislador permitiria que as unidades existentes, abertas ao público, pudessem prosseguir a sua actividade (artigo 51.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 168/97, de 4 de Julho, na redacção do Decreto-Lei n.º 57/2002, de 11 de Março).


47. Mas isto desde que se encontrassem em conformidade com a lei anterior. Ora, nem o Kremlin nem o Kapital se encontravam em condições de obter a protecção do direito anterior, pois, o alvará de licença sanitária não era bastante, como resultava inequivocamente do disposto nos artigos 36.º e segs. do Decreto-Lei n.º 328/86, de 30 de Setembro: ao alvará de licença sanitária haveria de acrescer o alvará de autorização de abertura, vulgarmente designado como ’licença de porta aberta’, a conceder pelo governo civil (artigo 37.º, n.º2).


48. De qualquer modo, e como se apontava na informação que motivara o despacho da Senhora Vereadora Ana Sofia Bettencourt, a autorização de abertura caducara «na sequência de obras de ampliação, reconstrução e alteração» (artigo 51.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 168/97, de 4 de Julho). Note-se, para mais, tratar-se de obras executadas clandestinamente, como foi o caso quer do Kremlin quer da Kapital.


49. Por ofício de 7.11.2005 (8), transmitiu-me Vossa Excelência o teor do parecer em que se louvara o seu despacho proferido em 16.09.2005, determinando a suspensão da intimação ordenada pela referida Vereadora.


50. No essencial, Vossa Excelência considerou ter sido preterida a audiência prévia dos interessados, motivo que inquinaria o acto, a acrescer à alegada incompetência da Senhora Vereadora por não dispor de delegação de competências para ordenar a cessação da utilização.


51. Considerou ainda os avultados prejuízos para a exploração económica do estabelecimento Kremlin e ordenou que se promovesse a «realização imediata de vistoria que, de forma inequívoca, avalie as condições de segurança para pessoas e bens do estabelecimento em causa».


52. A incompetência relativa do acto poderia ter sido suprida por ratificação de Vossa Excelência (artigo 137.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo) com o que, se assim fosse considerado imprescindível, poderia proceder-se à audiência dos interessados.


53. Imprescindível, dado que esta formalidade pode ser dispensada quando a decisão for urgente (artigo 103.º, n.º 1, alínea a), do Código do Procedimento Administrativo), como tudo leva a crer verificar-se, no caso concreto.


54. Encontrando-se o estabelecimento aberto ao público – sem licença – e indiciados riscos sérios para a segurança, ordenar o seu imediato encerramento não constituiria uma das decisões possíveis, mas a única decisão conforme com a lei. Aquilo que juridicamente toma a designação de poder vinculado.


55. É justamente nestes casos que o Supremo Tribunal Administrativo tem entendido poder «recusar efeito invalidante à preterição da formalidade prevista no art. 100.º do CPA», isto é, «se o acto tiver sido praticado no exercício de poderes estritamente vinculados e puder concluir, com inteira segurança, num juízo de prognose póstuma, que a decisão administrativa impugnada era a única concretamente possível» (Acórdão da 1ª Sub., de 16.02.2006 (9)).


56. Observo, inclusivamente, terem sido os próprios responsáveis pela exploração do Kremlin a admitirem a falta de condições de segurança no seu interior, posto que se queixaram à autoridade concelhia de saúde do mau estado de conservação dos pisos superiores com infiltrações graves, inundações e choques eléctricos, como também ulteriormente viriam reclamar da execução de obras ilegais nos mesmos pisos, pondo em perigo de colapso a placa sobranceira ao tecto do estabelecimento.


57. Todos estes aspectos tinham sido considerados pela Senhora Vereadora, visto o parecer da Senhora Chefe da Divisão de Análise de Projectos de Urbanismo Comercial, de 19.05.2005, e cuja parte final não deixa, também por outros motivos, de suscitar preocupação. Assim, pode ler-se: 



Informo ainda que ao compulsar o processo n.º 4738/PGU/02, verifiquei que não se encontravam no mesmo as notificações dirigidas à CHR – Promoção de Espectáculos de Animação Cultural e Restauração, Lda., e a RM – Hotelaria e Similares, SA, sendo que as mesmas haviam sido registadas no respectivo documento fornecido pelos CTT para o efeito. Saliento ainda que o registo relativo à empresa RM – Hotelaria e Similares, SA, foi arrancado, bem como o referente à empresa Duzentosporcento – Gestão, Restauração e Organização de Eventos, Lda. 


58. Vossa Excelência, depois de suspender a ordem de cessação da utilização, viria incumbir o Chefe do seu Gabinete de nos dar conta de nova informação relativa ao estabelecimento Kapital (10). Isto, em 3.02.2006.


59. Atende-se, uma vez mais, ao facto – como vimos, irrelevante – de o estabelecimento possuir alvará sanitário e regista-se continuar em marcha um processo de legalização de obras de alteração já executadas, as quais continuam a ser objecto de reservas por deficiências encontradas pelas entidades consultadas.


60. Kremlin e Kapital – não obstante a situação ilícita em que se encontram perante o município – são estabelecimentos publicitados em suporte electrónico patrocinado pelo município de Lisboa (www.lxjovem.pt), podendo numa das inscrições ler-se: 



Apesar das muitas vicissitudes, a resistente discoteca da Rua das Escadinhas da Praia, a já histórica Kremlin, continua a ser um destino incontornável nas noites da capital. Três salas com sons e ambientes distintos são a imagem de marca desta discoteca porto-seguro para os noctívagos mais madrugadores que aqui aportam depois de outras casas terem encerrado. 


61. Não se concretizam as vicissitudes a que alude a informação, mas a resistência da discoteca é notória, se a tomarmos, não do ponto de vista da engenharia, mas da invencibilidade diante do império da lei e das soçobradas medidas de polícia administrativa adoptadas. Tomada à letra esta mensagem divulgada pelo município, confia-se no discernimento do público para nela reconhecer várias figuras de estilo, mais ou menos próximas da ironia.


62. E, no mesmo suporte informativo, assinala-se como horário de funcionamento o de 4ª e 5ª 24h/7h, 6ª e sábado 24h/9h.


63. Isto, quando o horário se encontra reduzido pelo Governo Civil de Lisboa, com fecho às 4,00 h, facto que recentemente foi recordado a Vossa Excelência pela Senhora Governadora Civil (11).


(F)
Das perturbações da ordem pública


64. Acresce à situação descrita um invulgar número de ocorrências registadas pela Polícia de Segurança Pública e pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (agressões imputadas a vigilantes, uso ilícito de armas de fogo, estados agravados de perda de consciência por embriaguez), facto que me leva, do mesmo passo, a dirigir-me à Senhora Governadora Civil.


65. Como já referi, tive o cuidado de indagar junto das mesmas autoridades se um tão elevado número de sinistros ocorridos nas entradas – ou junto das entradas – de ambos os estabelecimentos seria comum a outros estabelecimentos congéneres, não apenas na freguesia de Santos-o-Velho, como em freguesias limítrofes, todas com elevada concentração de estabelecimentos de bebidas e com salas de dança. Nem de perto nem de longo, o volume de incidentes pode aproximar-se.


66. Mas a minha intervenção junto da Senhora Governadora Civil do Distrito de Lisboa, no âmbito dos poderes que lhe confere o disposto no artigo 48., n.º 1, do anexo ao Decreto-Lei n.º 316/95, de 28 de Novembro, em nada prejudica a indispensável intervenção de Vossa Excelência.


67. Se de um lado se esperam medidas para garantia da ordem na via pública, por outro, é legítimo esperar que não se arraste, por mais tempo, o funcionamento ilegal de ambos os estabelecimentos até que se comprove estarem preenchidas todas as prescrições legais e regulamentares. 


(G)
Conclusões


68. Temos, pois, Senhor Presidente, dois estabelecimentos de bebidas com salas de dança que jamais funcionaram em conformidade com a lei, presumindo-se juris et de jure deficiências de segurança quer do ponto de vista da estabilidade quer da segurança contra o risco de incêndio, não fora a circunstância de estas mesmas deficiências serem sistematicamente relatadas em acções de fiscalização e vistorias.


69. Dois estabelecimentos cujas empresas responsáveis pela sua exploração, sistematicamente, parecem ignorar a autoridade municipal no sentido da reposição da legalidade urbanística e da salvaguarda do interesse público mais importante: a integridade física de pessoas e bens.


70. Ao longo de dezassete anos, no que respeita ao Kremlin, de todas as vezes que a Câmara Municipal de Lisboa adopta providências, regista-se que as mesmas perdem efeito útil: não por ordem judicial, não sob instância de qualquer órgão externo de controlo, não por serem infirmados os pressupostos de facto, mas por acto superveniente do próprio município que retrocede, suspende ou condiciona o encerramento, em nome dos direitos e interesses legalmente protegidos das sociedades infractoras.


71. Dir-se-á que este caso não é ímpar, que outras discotecas se encontram abertas ao público sem licença de utilização, algumas delas com problemas de segurança. O citado estudo da Deco revela-o claramente. Tivemos o cuidado de averiguar as condições de outros estabelecimentos, em particular, no que se referia às perturbações da ordem pública e que nos tinham sido apontadas por representante dos reclamados particulares. Em nenhum dos casos se descortinou situação análoga, pelo menos, no que toca ao conhecimento dos serviços municipais e ao penoso arrastamento da intervenção municipal.


72. De todo o modo, se outras há, questiono-me, até quando? Não creio que possa a ilegalidade porfiada continuar a desafiar a autoridade pública, brandindo a igualdade como justificação.


73. Como reconhecerá Vossa Excelência, nada impede a Câmara Municipal de Lisboa de usar de tratamento absolutamente igual em relação às demais salas de dança – ordenar o seu encerramento até se encontrarem devidamente licenciadas e em condições de cumprir as estipulação elementares de segurança para os consumidores e para terceiros.


74. Permita-me insistir no desconhecimento da lotação máxima dos estabelecimentos a definir pela Câmara Municipal sem o que não podem ser minimamente controlados os padrões de segurança. Permita-me insistir no perigo concreto das instalações. Permita-me insistir nas múltiplas, sucessivas e indulgentes dilações concedidas aos proprietários dos estabelecimentos.


75. É que já na resposta à citada Recomendação do meu antecessor, em 1999, fora concedida uma margem de 60 dias às empresas responsáveis para regularizarem a situação. Passaram mais de seis anos e a situação não conheceu alterações significativas.


76. A licença de utilização para a prestação de serviços de bebidas – com ou sem salas de dança – é expressamente equiparada à licença de utilização comum (artigo 26.º, do Decreto-Lei n.º 168/97, de 4 de Julho), própria do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.


77. Assim, a Câmara Municipal é incumbida de observar e fazer observar as prescrições que disciplinam a instalação, classificação e funcionamento dos estabelecimentos e das que salvaguardam pessoas e bens contra riscos de incêndio ou contra a saúde pública.


78. Sem licença, funcionando com um simples alvará sanitário – como ocorre com a generalidade do pequeno comércio a retalho nos bairros históricos – o município de Lisboa está a assumir parte da responsabilidade por danos que se espera nunca venham a ocorrer, mas que não podem afastar-se como uma eventualidade.


79. E nesse caso, não podem os dirigentes municipais afirmar que ignoravam, desconheciam ou precisam de averiguar a situação, pois esta encontra-se suficientemente analisada, caracterizada e reiteradamente apontada pelo Provedor de Justiça como justificando providências urgentes de polícia administrativa.


80. Dir-me-á que estão em curso – ou continuam – procedimentos de legalização das obras e das utilizações clandestinas. Contudo, admitirá comigo que a legalização – enquanto expediente formal que se prolonga por maior ou menor lapso de tempo – não diminui os riscos, não salvaguarda a integridade de pessoas e bens nem satisfaz às exigências da legalidade democrática.


81. Uma vez encerrados os estabelecimentos, poderão reabrir as portas logo que se encontrem devidamente licenciados, cumprindo as suas obrigações para com o município e para com o interesse geral.


Recomendação





Em face do exposto, e nos termos do disposto no artigo 20º, n.º1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril, Recomendo a Vossa Excelência que, com fundamento no artigo 109.º, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, articulado com o artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 168/97, de 4 de Julho, determine a cessação da utilização da parte das edificações utilizadas indevidamente como estabelecimentos de bebidas com salas de dança, com as denominações Kremlin e Kapital, sitos nas Escadinhas da Praia, n.º5, e na Av. 24 de Julho, n.º68, freguesia de Santos-o-Velho, por se manterem abertos ao público sem licença de utilização, em infracção ao disposto no Decreto-Lei n.º 168/97, de 4 de Julho, considerando os riscos para a segurança de pessoas e bens suficientemente indiciados, considerando o tratamento privilegiado de que beneficiam perante outros estabelecimentos congéneres que se encontram em condições de abertura ao público e considerando a indulgência já larga e longamente cedida pelas autoridades aos responsáveis pela actividade, a fim de regularizarem a situação.


Cumpre-me recordar, por fim, o dever contido no art. 38º, nº2, do citado Estatuto do Provedor de Justiça, para o qual me permito pedir a melhor atenção. 


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 





Notas de rodapé:


(1) De resto, nunca localizado o do Kremlin pelos serviços municipais.
(2) Proc.º 4738/PGU/2002, fls. 33.
(3) Idem, fls. 145-146.
(4) Proc.º 189/DPELE/DIV/01, fls. 78.
(5) Ofício n.º 519/DUC/DAPUC/2004.
(6) v.g. Jornal de Notícias e Público, 20.Set.2005.
(7) Ofício n.º 17.340.
(8) OF/2200/GAP/2005.
(9) Proc.º 684/05, www.dgsi.pt/jsta.
(10) OF/2090/06/GAP/CML.
(11) Ofício n.º 3314, de 5.05.2006.


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