ANOTAÇÃO


Proc.º: P-22/04
Área: Unidade de Projecto



Assunto: Uso seguro de telefones móveis por crianças e jovens.



Objecto: Estudo do Provedor de Justiça sobre a questão da necessidade dos pais, educadores e professores disporem do conhecimento suficiente que lhes permita aconselhar os respectivos filhos e alunos, e vigiar o uso que eles dão aos telefones móveis.



Decisão: Intervenção junto da entidade reguladora (ICP-ANACOM) e do Governo (Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e Ministério da Educação) no sentido da aprovação de guias parentais, i.e., documentos informativos, apelativos e com linguagem simples, susceptíveis de explicar a um universo muito variado de indivíduos os tópicos essenciais do uso seguro dos telemóveis por crianças.




1. Introdução



Se todos os recentes meios tecnológicos que permitem uma utilização portátil levantam novas questões de segurança, estas matérias são especialmente sensíveis no campo do uso dos telefones móveis pelas crianças. Deve referir-se, desde já, que a Directiva nº 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000 (designada Directiva sobre comércio electrónico) já havia revelado especiais preocupações no domínio da protecção dos direitos dos menores no campo do comércio electrónico, as quais não parecem ter sido totalmente assimiladas pelo diploma que procedeu à transposição para o ordenamento jurídico português (o Decreto-Lei nº 7/2004, de 7 de Janeiro) (1).



Assim, uma justificação acrescida para a conveniência da intervenção da Provedoria de Justiça reside na deficiente transposição da Directiva, pelo menos na parte relativa à protecção das crianças.



Abordando a questão dos especiais perigos da utilização de telefones móveis pelos menores começa por destacar-se negativamente:




– o facto de, em regra, os pais desconhecerem quando as crianças estão a utilizar telefones móveis, o que dificulta em muito a supervisão parental;
– o fácil acesso das crianças a conteúdos não apropriados e potencialmente ilegais;
– a exposição das crianças a conteúdos totalmente desadequados, incluindo linhas de conversação e de encontros (grooming activities)
– a vulnerabilidade das crianças ao marketing, tanto na internet como nos telefones móveis, e a perda de privacidade.
– a susceptibilidade de exposição à influência da internet;
– o risco aumentado das crianças serem vítimas de bullying;
– o elevado número de ocorrências de furtos e roubos de aparelhos;
– a realização inadvertida de despesas de montante elevado;
– o risco que representam as mensagens de texto (SMS), similares às que ocorrem nos chat rooms da internet. Se, em um chat room da internet, qualquer pessoa pode esconder-se atrás de um endereço IP, nos SMS qualquer pessoa pode esconder-se atrás de um cartão pré-comprado. Assim, os alertas devem ser similares nas duas situações: ninguém deve marcar encontros com pessoas de quem não se conhece a identidade.


No mesmo domínio da segurança da utilização de telefones móveis por crianças deve realçar-se, positivamente, a circunstância daqueles aparelhos facilitarem, em muito, a localização dos utilizadores (na medida em que estão “sempre ligados”), fazendo aumentar o sentimento de acompanhamento parental das crianças e, também, a segurança dos pais relativamente à situação dos filhos. Veja-se, por exemplo, que um novo serviço recentemente disponibilizado por empresas comerciais consiste na possibilidade dos pais – em vez de telefonarem para os filhos perguntando-lhes onde estão, e podendo sujeitar as crianças a algum embaraço social – mandarem uma mensagem para a empresa e receber, em troca, um texto descrevendo a localização, e a respectiva indicação em um mapa com grau de segurança de 500m dentro das áreas urbanas.



Foram, contudo, os especiais perigos que os telefones móveis representam para as crianças que motivaram a abertura do presente processo. E atendendo às qualidades de «autoridade reguladora nacional» [nos termos do disposto na alínea bb) do artigo 3º da Lei nº 5/2004, de 10 de Fevereiro, a Lei das Comunicações Electrónicas] e de «entidade de supervisão central com autoridade em todos os domínios regulados [pelo Decreto-Lei nº 7/2004, de 7 de Janeiro]», nos termos do disposto no nº 1 do artigo 35º deste diploma, entendeu-se por bem fazer da ICP – Autoridade Nacional de Comunicações (ICP-ANACOM) o interlocutor deste órgão do Estado na instrução do presente processo.



2. Os principais perigos que os telefones móveis representam para as crianças


Está largamente difundida (2) a ideia de que a utilização das novas tecnologias de comunicação, a par de alguns benefícios, acarreta inúmeros riscos de cuja existência os pais devem estar totalmente cientes.



Em especial, devem os pais ter presente o perigo potencial:




– dos telefones móveis serem vistos como brinquedos;
– das crianças poderem ser contactadas aleatoriamente por estranhos (3);
– dos telemóveis poderem transformar-se em “escapes” (safety blanket) das crianças e passarem a constituir o seu principal apoio no dia-a-dia;
– dos telefones móveis  representarem uma nefasta distracção quando usados em alturas indevidas;
– do bullying e outras acções incómodas e agressivas, que podem ser realizadas através de mensagens de texto (SMS);
– da susceptibilidade das crianças ficarem vulneráveis perante aqueles que pretendem furtar ou roubar os aparelhos ou os cartões de memória;
– das crianças poderem não utilizar correctamente as protecções conferidas pelas passwords com o perigo de terem de pagar contas elevadíssimas em resultado da utilização por outras pessoas de telefones perdidos ou roubados;
– das empresas de marketing de produtos para os telemóveis poderem dirigir publicidade spam directamente aos telefones móveis das crianças.Comecemos pelo spam.


§2.1. Spam: o que é?



A palavra anglo-saxónica spam é o equivalente no correio electrónico ao correio comercial não desejado (junk mail) ou chamadas telefónicas incómodas (nuisance phone calls). Assim, spam pode ser definido como o conjunto das mensagens de correio electrónico não solicitadas que são enviadas em grande número (bulk) para indivíduos ou organizações que não as pediram nem autorizaram o seu recebimento.



Internacionalmente, são diversas as designações utilizadas para referir spam, ou as realidades abrangidas por aquela expressão, das quais podem referir-se:




– o correio electrónico comercial (ou UCE – Unsolicited Commercial Email) que faz publicidade a um produto ou serviço;
– o correio electrónico em massa (ou UBE – Unsolicited Bulk Email) que é utilizado para propaganda (ou lobbying, na designação anglo-saxónica);
– as cartas ou mensagens “em cadeia” (chain letters) ou “em pirâmide” (pyramid schemes) que visam a prática de actos fraudulentos ( como o phishing(4);
– as mensagens enviadas para um destinatário que, originalmente autorizou a recepção de mensagens de correio electrónico mas que, depois, exerceu a opção de desistência (opting-out);
– quaisquer mensagens que não permitam exercer a opção opt-out;
– as situações em que a opção opt-out é facultada de forma deliberadamente enganosa ou mediante difíceis procedimentos de activação;
– quando o endereço do remetente de uma mensagem de correio electrónico não é válido ou correcto.


A realidade do spam é tão relevante que, em Maio de 2004, o Ministério da Indústria do Canadá criou um grupo de trabalho especial para tratar este assunto.



Uma das actividades deste grupo de trabalho foi a campanha stop spam here.



Aquela campanha era dirigida a levar as pessoas a não adquirir produtos anunciados por spam; a não ler o seu conteúdo; e a apagar imediatamente aquelas mensagens.



Note-se que a já mencionada Directiva sobre comércio electrónico se refere a esta realidade no artigo 7º (epigrafado «comunicação comercial não solicitada»), designadamente sobre a necessidade de serem criadas opções opt-out. Esta preocupação foi também acolhida no artigo 22º do Decreto-Lei nº 7/2004, de 7 de Janeiro.



Neste domínio específico, a alargada difusão de informação relativamente aos direitos dos consumidores do comércio electrónico é essencial. Mas, ao mesmo tempo e como fica patente no exemplo canadiano, cabe às autoridades públicas desempenhar um papel relevante no combate a práticas abusivas, ainda que esse papel possa ser de mera informação e aconselhamento.



Ora, em face da dificuldade – quando não da impossibilidade – das crianças distinguirem as mensagens publicitárias da realidade e, bem assim, da sua especial vulnerabilidade a determinados apelos, o spam constitui um perigo muito particular que deve ser combatido.



§2.2. Bullying



Outro dos problemas particulares que deve ser abordado é o do uso de mensagens de texto para incomodar e perseguir crianças, o que constitui um novo e sofisticado meio de bullying susceptível de ter sérias consequências.



Nesta problemática também se incluem diferentes realidades, a saber:




– as “chamadas silenciosas”;
– as “mensagens verbais abusivas ou ofensivas”, recebidas uma ou diversas vezes;
– os “textos ameaçadores e insultuosos”;
– as imagens ofensivas ou perturbadoras;
– o acto de “bombardear” alguém com um vasto número de mensagens (v.g., mais de 100 por dia);
– o “roubo de identidade”.


Acrescente-se que também que são conhecidos relatos de situações em que textos abusivos ou ofensivos foram enviadas através de endereços na internet que usaram nomes ou números de telefone de terceiros que nada tinham a ver com as mensagens. Vertente diferente, mas também já devidamente identificada, consiste na criação de páginas na internet (web sites) com o único propósito de alojar mensagens desagradáveis sobre determinadas pessoas.



Como forma de evitar estes perigos os utilizadores são aconselhados a limitar ao máximo o número de pessoas a quem fornecem os seus número de telefone e, no caso do bullying ter já começado, pode até ser aconselhável mudar de cartão SIM. Por outro lado, para propiciar o combate a estas práticas, é igualmente pedido que as vítimas anotem, rigorosamente, os dias e as horas das mensagens mas que, sem excepção, a elas não respondam. De qualquer modo, mesmo que as mensagens sejam apagadas (delete), as crianças devem relatar os casos aos pais para que estes possam apresentar queixa às autoridades policiais.



Contudo, e uma vez mais, revela-se indispensável a divulgação de informação junto das crianças e dos seus pais, designadamente sobre a existência de meios de protecção. Esta será a melhor forma de permitir acções eficazes de combate àquelas práticas ilícitas.



§2.3. Despesas avultadas realizadas por crianças



Um outro dos problemas suscitados pelo uso de telemóveis por crianças está ligado ao montante das despesas resultantes da realização de chamadas e da aquisição de serviços.



Também neste domínio é crucial o conhecimento dos pais, não só relativamente ao serviço cuja utilização deu origem à despesa como, e especialmente, sobre os mecanismos de actuação disponibilizados, pela lei, em geral, mas também pelos aparelhos e pelas operadoras, em particular. A titulo de exemplo, note-se que os pais apenas seriam obrigados a pagar os montantes eventualmente cobrados pelos serviços de áudio-texto (ou de valor acrescentado) utilizados pelos filhos menores no caso de terem autorizado a sua realização (5).



Mais difícil de tratar é a questão dos download de toques através dos telemóveis, ou a obtenção de imagens pelo mesmo meio, uma vez que será virtualmente impossível saber se foi um adulto ou uma criança a solicitar o serviço. Por outro lado, muitas despesas provêm de mensagens de texto (SMS) enviadas em chats comerciais. Também aqui a informação desempenha uma função especial uma vez que estas despesas não devem ser pagas se se verificar que as crianças foram induzidas a crer que os chats eram privados (i.e., não comerciais).



Os pais também devem estar cientes de que a utilização de cartões pré-pagos não constitui uma solução satisfatória para o problema das despesas com telemóveis, uma vez que – na maioria das situações – as tarifas por SMS ou chamadas são superiores às cobradas nos contratos de subscrição. Ainda assim, sempre se dirá que é comum defender-se que a melhor opção poderá ser a celebração de contrato de telefone móvel com cláusula de limitação de pagamento.



Contudo, repete-se, as escolhas pressupõem o acesso a informações que, regra geral, os pais e os filhos não têm.



§2.4. Crimes praticados com telemóveis



Os órgãos de comunicação social noticiam regularmente casos de uso de telemóveis para a prática de crimes, designadamente através da utilização de cartões de crédito roubados ou de números de cartões copiados com o intuito de aumentar os carregamentos, ou o tempo disponível, em cartões pré-comprados.



Em regra, as operadoras telefónicas têm mecanismos de combate a estas práticas que passam, por um lado e nos casos de serem identificadas operações criminosas (como carregamentos através de cartões falsos ou roubados), por impedir novos acessos do número de telefone através do qual elas foram realizadas, desconsiderar os carregamentos indevidos e fazer incluir os números em uma “lista negra”; e, por outro lado, quando um aparelho é utilizado para prática de crimes com diferentes cartões SIM, pela inclusão do próprio aparelho em uma “lista negra” que não permite a sua nova utilização.



Como um grande número de acções criminosas envolve jovens com menos de 18 anos de idade, são usualmente difundidas regras para evitar que os cartões SIM ou os aparelhos sejam listados. Assim, os menores são aconselhadas a:




– não se deixarem tentar. Mesmo que recebam ofertas de números de cartões de crédito para serem usados no seu telemóvel, os menores devem estar cientes da ilicitude daquela acção.


– não aceitarem ofertas de carregamento de cartões pré-pagos por valores inferiores aos efectivamente usufruídos (por exemplo: pagamento de 10€ por um carregamento de 20€). De facto, é provável que alguém esteja a usar cartões de crédito furtados ou roubados para fazer aqueles carregamentos.


– não emprestar os cartões pré-comprados a alguém que prometa acrescentar, depois, novos carregamentos. Na verdade, se for usado um cartão de crédito furtado ou roubado quem é associado à prática do crime é sempre o proprietário do cartão SIM.


Outro problema relevante diz respeito à possibilidade de ser comprado um telefone móvel “em segunda mão“, na medida em que, caso o respectivo desaparecimento tenha sido comunicado às autoridades como resultante de crime (furto, roubo ou uso indevido), é possível que ele esteja bloqueado. Assim, é sugerido que as pessoas verifiquem que os telemóveis adquiridos “em segunda mão” efectivamente trabalham. Por outro lado, se os aparelhos foram incluídos nas “listas negras é provável que seja muito difícil – ou impossível – retirá-los de lá.



Em suma: também aqui a questão da informação é fulcral.



3. Uma questão de saúde pública?



Uma vez que as estações terrestres de transmissão necessárias aos telefones móveis usam ondas rádio (i.e., ondas de radiação de frequência rádio de baixa energia) que são transmitidas através da antena de um telemóvel para uma estação base, e vice versa, e porquanto as estações, por seu turno, estão rodeadas de campos electromagnéticos (i.e., forças de energia que são criadas quando a electricidade é gerada), debate-se a questão das implicações para a saúde pública do uso de telefones móveis.



Esta matéria é especialmente relevante, naturalmente, no domínio da infância.



Em Julho de 1998, a Agência Canadiana de Protecção das Radiações (Health Canada’s Radiation Protection Bureau) dirigiu um pedido à Royal Society of Canada para que designasse uma comissão de peritos que se pronunciasse publicamente sobre a suficiência das normas legais que, naquele país, protegiam os riscos para a saúde pública associados à exposição aos campos de radiofrequências provenientes de dispositivos de telecomunicações sem fios. O relatório produzido foi designado A Review of the Potential Health Risks of Radiofrequency Fields from Wireless Telecommunication Devices. As suas conclusões revestiram natureza iminentemente técnica (6) mas constituíram um marco na percepção da relevância desta matéria para a saúde pública.



Em 1999, o Governo britânico designou uma comissão científica independente (7) para estudar as implicações na saúde das ondas rádio e das ondas magnéticas relacionadas com a utilização dos telemóveis e das estações de transmissão a qual, em Maio de 2000, produziu as seguintes conclusões principais:




– não existem riscos especiais para as pessoas que vivem perto das estações terrestres, na medida em que a exposição às radiações fica muito aquém dos limites tolerados;
– as ondas rádio podem causar alterações na actividade cerebral, ainda que as causas permaneçam desconhecidas;
– uma abordagem cautelar do uso de telefones móveis é recomendada, especialmente pelas crianças, até que seja aprofundado o conhecimento científico neste domínio.


Em geral, estas conclusões foram reafirmadas em uma actualização do relatório de 2004.



Pese embora subsistir a inexistência de provas científicas da perigosidade da utilização de telefones móveis pelas crianças, inúmeras pessoas e organizações têm aconselhado os pais a limitar o uso de telemóveis por crianças ao número de vezes estritamente indispensável, por causa dos potenciais riscos para a saúde (8).



Uma vez mais, é aconselhável a disponibilização de informação sobre estas matérias.



Contudo, os esclarecimentos devem ser dirigidos não só (nem principalmente) às crianças mas, especialmente, aos pais e aos professores, por forma a permitir que eles tomem decisões conscientes, enquanto consumidores e educadores.



4. O que fazer para garantir que as crianças estão em segurança com telefones móveis



Apesar da situação que ficou sumariamente descrita, são conhecidos procedimentos simples susceptíveis de assegurar algum grau de protecção ao uso de telemóveis por crianças.



De facto, os comportamentos que os pais podem adoptar em ordem a garantir que as crianças estão em segurança ao utilizar telefones móveis podem passar pela adopção de medidas antes da compra dos aparelhos ou, mesmo, quando eles estão já a ser usados. É comummente aceite que os pais devem:




– em primeiro lugar, respeitar todas as regras usualmente aceites para os telefones fixos;
– confiar que as crianças usam os telefones de forma responsável mas, ainda assim, discutir com elas os perigos potenciais do seu uso;
– limitar o número de chamadas que podem ser feitas adquirindo um “telefone de carregamentos sucessivos”;
– garantir que o telemóvel da crianças está protegido com códigos de segurança que os pais conheçam;
– garantir que o telefone é usado principalmente como tal, e não como brinquedo ou “consola de jogos”;
– estar cientes das capacidades e das funcionalidades do aparelho, e garantir que ele é adequado às necessidades das crianças;
– conhecer a linguagem que é usada nas mensagens de texto (SMS), e ensinar as crianças sobre as ocasiões adequadas e aceitáveis para enviar/receber SMS;
– discutir com as crianças as contas telefónicas (ou os carregamentos) em períodos determinados, e examinar os números de telefone que foram contactados.


Como é bom de ver, estas devem ser preocupações parentais. Contudo, mesmo também das entidades públicas nacionais se esperam contributos relevantes no campo das medidas de protecção do uso seguro de telemóveis pelas crianças, até porque a ausência de mecanismos de protecção não provém – em regra – de omissão legislativa, estando já previstas na lei inúmeras medidas neste domínio.



Assim, é a divulgação de informação sobre a matéria da utilização dos telemóveis que se revela, cada vez mais, absolutamente crucial.



§4.1. Guias parentais



O principal meio para alcançar um mais satisfatório nível de protecção no uso dos telemóveis pelas crianças passa, necessariamente, por disponibilizar informação àqueles a quem cabe, em primeira linha, a vigilância dos menores: os pais, os educadores e os professores.



Como resulta do que ficou dito atrás, a questão dos guias parentais releva, essencialmente, da necessidade dos pais disporem do conhecimento suficiente que lhes permita aconselhar os respectivos filhos e vigiar o uso que eles dão aos telefones móveis.



Ora, à semelhança do que foi feito em outros países com características demográficas e sociais não muito diferentes de Portugal (9), parece aconselhável assegurar o direito à informação dos pais das crianças utilizadoras de telemóveis, o que parece viável mesmo sem investimento de meios financeiramente relevantes.



De facto, deve dar-se cumprimento ao disposto no artigo 8º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho), que impõe que «o fornecedor de bens ou serviços deve, tanto nas negociações como na celebração de um contrato, informar de forma clara, objectiva e adequada o consumidor (…)» (nº 1), permitindo que os adultos possam identificar as realidades a que se tem vindo a aludir (10) (e as suas potencialidades), designadamente:




– os cartões SIM (subscriber indentification module);
– o número de série IMEI (international mobile equipment identity);
– os SMS (short messaging services);
– os MMS (multimedia messaging service);
– os email;
– a tecnologia Bluetooth;
– os PRS (premium rate services);
– o PDA (personal digital assistant);
– a prática de bullying.


Os guias parentais devem ser documentos informativos, apelativos e com linguagem simples, susceptíveis de explicar a um universo muito variado de indivíduos os tópicos essenciais do uso seguro dos telemóveis.



§4.2. Códigos de conduta



A Directiva sobre comércio electrónico (Directiva nº 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000) visou assegurar a livre circulação dos serviços da sociedade da informação entre os Estados-Membros [vide §(8) dos considerandos], ainda que sem prejudicar os níveis de protecção da saúde pública e do consumidor [§(11) dos considerandos], foi transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei nº 7/2004, de 7 de Janeiro.



Este diploma, no nº 1 do respectivo artigo 42º, dispõe que «as entidades de supervisão estimularão a criação de códigos de conduta pelos interessados e a sua difusão por estes por via electrónica».



Contudo, deve destacar-se que, no domínio da protecção dos menores, a Directiva vai mais longe e postula, expressamente no artigo 16º, nº 1, que os «Estados-Membros e a Comissão incentivarão [al. e)] a redacção de códigos de conduta em matéria de protecção dos menores e da dignidade humana».



No decurso da instrução do presente processo ficou patente que o procedimento de elaboração do código de conduta está já em curso, tendo esta informação sido prestada por todas as operadoras através do ICP-ANACOM.



§4.3. Combater o bullying



Porque a grande maioria das pessoas vítimas de bullying não está motivada para falar sobre essa realidade a terceiros, devem ser criados canais facilitadores da denúncia e do pedido de auxílio. Importa lembrar, uma vez mais, que sendo as vítimas crianças, as dificuldades tendem, naturalmente, a avolumar-se, a todos os níveis.



De facto, para além da ajuda pessoal que pode ser prestada, existem também mecanismos susceptíveis de permitir “localizar” a origem da mensagem, uma vez que os textos deixam aquilo que os especialistas designam por “rasto electrónico” (electronic trail), que pode ser seguido. Neste domínio concreto, é importante que as operadoras disponham – como já acontece em diversas situações – de procedimentos para fazer cessar a recepção de mensagens de determinados números e/ou nicknames.



Contudo, é importante que estes mecanismos sejam divulgados por todos, incluindo as crianças mas, também, os seus pais.



Essencial parece ser, também, a produção de elementos informativos para serem distribuídos nos estabelecimentos de ensino, em geral, e aos professores, em particular.



§4.4. Sistemas de filtragem de conteúdos



O considerando 30 da Directiva sobre comércio electrónico (nº 2000/31/CE) menciona que «deveriam ser incentivadas e facilitadas iniciativas de colocação de “filtros” por parte das empresas» para fazer face às comunicações comerciais não solicitadas.



Até porque esta preocupação não se estendeu ao normativo da própria Directiva, ela também não passou para o diploma interno de transposição; contudo, a Provedoria de Justiça deve defender que as autoridades portuguesas cuidem de propiciar abordagens a esta realidade, designadamente visando proteger as crianças.



Uma vez que, por um lado, a obrigação da Directiva incidiu sobre os Estados, visando levá-los a criar obrigações dirigidas às empresas e, por outro lado, a transposição para o direito interno não deu adequada resposta a esta preocupação, a intervenção deste órgão do Estado deve ir ao ponto de manifestar preocupação sobre a actual situação e, designadamente, sobre a ausência de medidas concretas com utilidade para as crianças, para os pais e para as famílias.



5. Conclusões sobre a intervenção do provedor de justiça


Sobre o código de conduta, a Provedoria de Justiça limitou-se a aguardar a concretização da autoregulação. A ideia é, naturalmente, esta: somente se os operadores não lograrem encontrar plataformas de entendimento visando a consagração de regras de ética comercial, deve o Estado impô-las em defesa dos grupos mais vulneráveis.



Já sobre a possibilidade de aprovação de um guia parental entendeu-se, diferentemente, que a obrigação contida no artigo 16º, nº 1, da Directiva sobre comércio electrónico (Directiva nº 2000/31/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de Junho de 2000), no sentido de que


os «Estados-Membros (…) [incentivem] a redacção de códigos de conduta em matéria de protecção dos menores e da dignidade humana» impõe, necessariamente, a criação de mecanismos especiais de informação dirigidos às crianças mas, e sobretudo, aos pais e educadores. De facto, não é possível proteger os menores através de procedimentos que não passem pela informação parental.



Assim, a Provedoria de Justiça chamou a atenção do Governo (Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e Ministério da Educação) para o actual estado de desprotecção das crianças neste domínio concreto, o qual também resulta do um grave desfasamento tecnológico-cognitivo sentido por muitos adultos, e deve, em conformidade, sugerir a criação de guias parentais.



Finalmente, a Provedoria de Justiça também se pronunciou sobre a questão dos sistemas de filtragem de conteúdos (designadamente sobre o spam a que alude o considerando 30 da Directiva nº 2000/31/CE), atendendo – no caso vertente – à especial vulnerabilidade das crianças relativamente à publicidade, e o facto da publicidade ser o motor que desencadeia grande parte dos comportamentos perigosos tidos pelas crianças.



 


 





Notas de rodapé:


(1) A título de exemplo, note-se que, ao passo que a Directiva postula a criação de códigos de condutas especificamente preocupados com a protecção dos menores [vide artigo 16º, al. e)], o diploma nacional apenas se refere ao «estímulo» para a criação de códigos de conduta, em geral (artigo 42º, nº 1).
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(2) Como prova o facto de existirem inúmeras páginas de diversas entidades públicas, designadamente na Europa, Estados Unidos da América e Austrália, sobre esta questão. Podem destacar-se, a título meramente exemplificativo:
  http://www.netalert.net.au;
  http://www.bullying.co.uk/children/mobile_phone.htm;   http://www.wales.gov.uk/subihealth/content/keypubs/pdf/mobilephones_e.pdf.
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(3) Nestas situações, parece que alguns adultos procuram, de forma aleatória, crianças que lhes respondam para, então, estabelecer contactos duradouros.
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(4) Phishing (também designada por phising) é a prática através da qual alguém insinua ser de uma empresa licitamente constituída e envia mensagens de correio electrónico enganosas solicitando dados pessoais e elementos financeiros das pessoas ludibriadas. Quando as informações são fornecidas, usualmente acontece um “roubo de identidade” (identity theft) que pode dar origem à transferência de dinheiro, ou ao seu uso para directamente fazer compras na internet.
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(5) Esta questão não assume especial relevância no contexto actual do ordenamento jurídico português, na medida em que vigora o princípio do barramento (artigo 45º da Lei das Comunicações Electrónicas) dos serviços de áudio-texto. Assim, a não ser que tenha havido activação escrita, feita pelos próprios pais (porque os menores não o podem fazer), as crianças não podem aceder a estes serviços. E caso tenha havido activação escrita por um adulto, este passa, naturalmente, a ser responsável pelas despesas realizadas.
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(6) Cujas conclusões não podem ser directamente aproveitadas para o presente processo na medida em que elas resultaram em juízos sobre a compaginação dos estudos científicos realizados com as normas técnicas que relativas à protecção aos trabalhadores canadianos.
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(7) Porque a comissão era liderada por Sir William Stewart, o relatório ficou conhecido como The Stewart Report.
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(8) Veja-se, a título de exemplo: http://news.bbc.co.uk/2/hi/health/4163003.stm.
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(9) Veja-se o exemplo da Irlanda, em que as três operadoras concorrentes elaboraram o documento The Knowlegde – A Parents Guide To Mobile Phones (http://www.icia.ie/).
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(10) Para as quais, muitas vezes, apenas existe a designação anglo-saxónica.
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