PARECER


Entidade visada: Governo
Proc.º: R-2928/06
Área: A4
Data: 17 de Outubro de 2006


Assunto: Actividade de mediador de conflitos. Exigência de curso de formação, não gratuito. Liberdade de escolha de profissão. 


Síntese: 
1. Um cidadão, interessado na actividade de mediador de conflitos, requereu a intervenção do Provedor de Justiça relativamente à seguinte questão:



a) Nos termos do art. 31º da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, os mediadores que colaboram com os julgados de paz devem, entre outros requisitos, estar habilitados com um curso de mediação reconhecido pelo Ministério da Justiça;


b) Actualmente, o único curso que beneficia de tal reconhecimento é o Curso Teórico-Prático de Formação em Mediação de Conflitos, ministrado pelo Instituto de Mediação e Arbitragem de Portugal (IMAP), cuja frequência implica o pagamento de um propina no valor de € 1.650.


c) Entende o reclamante que este facto fere o princípio da igualdade de oportunidades, por apenas permitir o acesso àquela função por parte de quem tem possibilidade de pagar o custo do referido curso, o que não encontra, além do mais, paralelo no acesso a outras funções que requerem formação específica, como a de magistrado.


2. No âmbito da instrução do processo, foi ouvida a Direcção-Geral da Administração Extrajudicial que, em resposta, comunicou que:



a) o Ministério da Justiça funciona como organismo regulador para o reconhecimento de cursos de mediação de conflitos, promovidos por entidades privadas, habilitantes à prestação destes serviços nos julgados de paz;


b) os mediadores são profissionais independentes que não adquirem a qualidade de agente ou funcionário, nem têm direito a uma remuneração fixa por parte do Estado;


c) o reconhecimento dos cursos é casuístico, feito na sequência de pedido das entidades promotoras, não se pronunciando o Ministério sobre “os valores a que essas entidades privadas oferecem os seus serviços”; no total, já foram objecto de reconhecimento os cursos de mediação ministrados por 9 entidades.


3. Apreciada a reclamação, foi entendido não se justificar a intervenção do Provedor de Justiça no sentido proposto, com base nos fundamentos constantes do seguinte parecer.


*******
***** 


PARECER:


1. A questão, na forma como está equacionada, dirime-se em torno da liberdade de escolha de profissão e reside em saber se a exigência de um curso de mediação, com o inerente custo, constitui uma restrição ilegítima àquele direito fundamental. Antes de analisar o regime deste direito, que se busca essencialmente na Constituição, importa determo-nos sobre o regime legal da actividade de mediação.


2. O regime jurídico da mediação encontra-se previsto na Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, a qual regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e na regulamentação constante da Portaria n.º 1112/2005, de 28.10 (1).







2.1. Nos termos do art. 16º, em cada julgado de paz existe um serviço de mediação que disponibiliza a qualquer interessado a mediação, como forma de resolução alternativa de litígios e que tem por objectivo estimular a resolução, com carácter preliminar, de litígios por acordo das partes. O princípio predominante é, assim, o da voluntariedade, porquanto os interessados não estão vinculados a recorrer à mediação e podem, a qualquer momento, desistir de tais serviços (art. 55º, n.º1).


2.2. Outro traço dominante do regime é o da participação “activa e directa” das partes, que deverão procurar, “por si próprias, uma solução negociada e amigável para o conflito que as opõe”, no que são auxiliadas pelo mediador, enquanto terceiro neutro, independente e imparcial, que coloca “a sua preparação teórica e o seu conhecimento prático” ao serviço daquele fim (art. 35º (2)).


2.3. O estatuto dos mediadores de conflitos caracteriza-se essencialmente por estes serem:



a) “profissionais independentes“, contratados em regime de prestação de serviços, e cuja actividade não lhes confere a qualidade de agente nem lhes garante o pagamento de qualquer remuneração fixa por parte do Estado (arts. 30º, n.º 1, 33º, n.º 4, e 34º);


b) “adequadamente habilitados a prestar serviços de mediação“, para o que devem reunir requisitos relativos à idade (superior a 25 anos), capacidade (encontrar-se no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos), habilitacionais e de formação (dominar a língua portuguesa, possuir licenciatura adequada e estar habilitado com um curso de mediação reconhecido pelo Ministério da Justiça) e de idoneidade (não ter sofrido condenação nem estar pronunciado por crime doloso) – arts. 30º, n.º 1, e 31º;


c) seleccionados por concurso curricular, no qual é condição preferencial a residência na área territorial abrangida pelo julgado de paz [art. 32º e 31º, alínea g)] (3);


d) e fiscalizados, na sua actividade de mediação, por uma comissão (4).


2.4. Importa ainda reter que, uma vez seleccionados, os mediadores constam de uma lista existente em cada julgado de paz, sendo a sua escolha da responsabilidade das partes ou feita pela secretaria na falta de acordo (art. 51º, n.º 2).


2.5. Quanto a incompatibilidades, dispõe-se apenas que os mediadores não podem exercer advocacia no julgado de paz onde prestam serviço (art. 30º, n.º 3, da Lei), prevendo-se no art. 17º da Portaria n.º 1112/2005 o respectivo regime de impedimentos.


3. Caracterizado sucintamente o estatuto dos mediadores de conflitos, compete-nos agora debruçarmo-nos sobre a questão de saber se, como o reclamante defende, a liberdade de escolha e exercício da actividade de mediação se encontra ilegitimamente limitada pela exigência de aquisição de formação específica reconhecida pelo Ministério da Justiça.





 3.1. A Constituição consagra no art. 47º, n.º 1, a liberdade de trabalho, que se desdobra em liberdade de escolha e liberdade de exercício de profissão (5).


3.2. Nesta figura integra-se, por expressa referência na redacção da norma, quer o exercício de uma profissão propriamente dita, quer o de qualquer género de trabalho, ainda que não revista carácter profissional. É esta, aliás, a natureza da mediação, que não constitui propriamente uma profissão, mas uma actividade. De facto, a caracterização legal dos mediadores como “profissionais independentes, adequadamente habilitados a prestar serviços de mediação“, contratados como prestadores ocasionais de serviços, sem remuneração regular, conduz-nos à ideia de que o legislador pretendeu que os prestadores destes serviços sejam escolhidos entre pessoas que têm uma (outra) actividade profissional exercida com independência, por serem aquelas cujo perfil melhor se adequa ao exercício de uma actividade de mediação. Esta actividade é, pois, desempenhada, em princípio, em acumulação com outra profissão (desde que não seja a de advocacia no julgado de paz onde a mediação tem lugar).


3.3. Não se trata, porém, de um direito absoluto ou incondicionável (6), pois a norma do art. 47º, n.º1, ressalva “as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade“. Seguindo de perto o que o Tribunal Constitucional tem defendido nesta matéria (7), “não podendo assim pôr-se em dúvida a legitimidade de princípio do legislador para condicionar ou restringir o exercício dos direitos fundamentais em causa (8), segue-se que uma regulamentação legal condicionante ou restritiva, seja do acesso a determinada actividade ou profissão, seja da iniciativa económica privada em determinado domínio, só será constitucionalmente censurável se não puder de todo em todo credenciar-se à luz do especificamente determinado nos citados artigos 47º, n.º1, e 61º, n.º1 (mormente no primeiro), ou se extravasar os limites que a Constituição, no seu artigo 18º, n.º 2 e 3, põe, em geral, às normas restritivas de direito, a saber: – o da necessidade e proporcionalidade da restrição; – o do seu carácter geral e abstracto, e não retroactivo; – e o do respeito pelo conteúdo essencial do preceito constitucional consagrador do direito.”


3.4. Ora, nenhuma das restrições à actividade de mediação, constantes no essencial do elenco de requisitos que o candidato a mediador deve reunir, ofende os limites da proporcionalidade e do carácter geral, abstracto e não retroactivo. E também não se pode dizer que desrespeitem o conteúdo essencial da liberdade de trabalho. Nem será difícil, aliás, descortinar o fundamento material das aludidas compressões do direito: elas dirigem-se à prossecução do interesse colectivo de que a actividade de mediação seja exercida por pessoas com a necessária maturidade, competência e idoneidade, sob pena de se frustar o desígnio que presidiu a esta forma de resolução alternativa de litígios.


3.5. No que especificamente diz respeito à exigência de formação profissional em mediação, não gerará especial polémica o reconhecimento de que não basta possuir uma licenciatura “adequada” para se estar habilitado a exercer, com competência, a actividade de mediação, pelo que é razoável exigir aos mediadores que se encontrem especificamente preparados para orientar sessões de mediação de conflitos. Do mesmo passo, também não parece controversa a exigência de reconhecimento estadual dos cursos de mediação, surgindo claro o interesse que lhe está subjacente de garantia da qualidade da formação.


4. Se não está, assim, em causa a conformidade constitucional da exigência de formação específica em mediação, temos que concluir que a questão não se equaciona tanto em torno das limitações à liberdade de profissão ou trabalho, mas antes na promoção da igualdade no acesso à profissão ou trabalho. Aquela busca, como vimos, os seus parâmetros no citado art. 47º, n.º 1, enquanto esta última está prevista no art. 58º, n.º 2, da Constituição, que incumbe o Estado de promover a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho. Esta distinção acaba por residir numa outra, também patente na Constituição, mas de âmbito mais lato, que separa a igualdade perante a lei ou jurídico-formal, de que trata o art. 13º, e a igualdade real entre os cidadãos nacionais, esta prevista no art. 9º, n.º 2, alínea d), ao dispor que constitui tarefa fundamental do Estado promover “a igualdade real entre os portugueses“. E, na verdade, aquilo que o reclamante realmente pretende é que o Estado promova a formação em mediação, como faz, por exemplo, no caso dos magistrados.


5. Certo é, porém, que a questão da igualdade real de oportunidades na escolha de profissão, porque se trata da efectivação de um direito económico, “não depende apenas da aplicação das normas constitucionais concernentes à organização económica. Depende também, e sobretudo, dos próprios factores económicos, assim como – o que nem sempre é suficientemente tido em conta – dos condicionalismos institucionais, do modo de organização e funcionamento da Administração pública e dos recursos financeiros” (9). Ou seja, “o direito fundamental ao trabalho não consta, por conseguinte, de uma disposição directamente aplicável, valendo antes como uma imposição aos poderes públicos, sempre dentro de uma reserva do possível, no sentido da criação das condições, normativas e fácticas, que permitam que todos tenham efectivamente direito ao trabalho” (10).


6. Assim sendo, a questão que, de seguida, forçosamente se coloca é a de saber se, à luz do contexto em que ora nos movemos – que é o da intervenção do Provedor de Justiça – e no momento actual de desenvolvimento do direito fundamental ao trabalho, ou seja, no estádio actual de cumprimento da incumbência de promoção de igualdade de oportunidades na escolha da profissão, fará sentido hoje exigir ao Estado que garanta essa igualdade no caso da actividade de mediação.


7. É que se é certo que ao Provedor de Justiça não está vedado, em princípio, intervir em sede da concretização dos direitos económicos e sociais e, designadamente, no que respeita ao “grau” ou “à velocidade” dessa concretização, a verdade é que não só não o pode fazer sem critério orientador, como tal intervenção deve ser especialmente cautelosa quando o que está em causa não é tanto a omissão legislativa na protecção de um direito fundamental, mas sim a medida ou a extensão desta protecção. Até porque, neste caso, tendo presente que os recursos do Estado não são ilimitados, o que se dirime a maior parte das vezes é a forma de distribuição e de aplicação destes recursos, questão que se insere já no domínio da definição das políticas públicas e, por essa razão, dificilmente pode ser submetida a um escrutínio que parta da consideração de uma situação concreta e não de uma visão sistémica.


8. Ora, neste contexto, não parece irrelevante notar que a própria liberdade de aprender, enquanto condição de exercício de uma profissão, admite alguma limitação com base na condição económica dos interessados, pois a Constituição estipula que o ensino superior deve ser tendencialmente gratuito. E o Tribunal Constitucional considerou que esta norma não é ofendida pela exigência de uma propina como a que foi fixada pela Lei n.º 20/92, de 14 de Agosto (11).


9. Por outro lado, há um número considerável de profissões, que não são de menor relevo público do que a actividade de mediação, cujo exercício está dependente da frequência de cursos ou estágios não suportados ou apoiados pelo Estado, como sucede, por exemplo, com a advocacia, a actividade de solicitador ou de técnico oficial de contas. Note-se a este propósito que o Tribunal Constitucional já se pronunciou (12) no sentido de considerar que a obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Advogados, assim como a imposição de quotização aos seus membros, não constituem exigências inconstitucionais, por se mostrarem adequadas e necessárias à realização do objectivo pretendido pelo Estado ao delegar naquela associação o prosseguimento de certos fins. De acordo com o mesmo Acórdão, este interesse público é suficientemente consistente para justificar a limitação que a obrigatoriedade de inscrição na mesma entidade não deixa de representar para a livre escolha e exercício da profissão de advogado.


10. Nem será difícil descortinar por que razão a opção do Estado quanto à formação dos magistrados tenha sido diferente: porque o desempenho competente e independente dos tribunais constitui condição para a concretização de um dos pilares do Estado de direito democrático – o princípio da separação de poderes -, o Estado quis incumbir-se directamente da formação dos magistrados, mais do que por razões de equidade ou de promoção de igualdade de oportunidades no acesso à função, até porque essa igualdade, como vimos, não é total no acesso à licenciatura em Direito.


11. Em resumo, não estando em causa, na questão subjacente aos presentes autos, uma limitação excessiva ou desproporcionada no acesso a uma actividade ou género de trabalho, que implique desigualdade perante a lei, mas sim a extensão ou medida do cumprimento da incumbência do Estado de promoção de igualdade de oportunidades no acesso ao trabalho, quando em muitas outras profissões e muitos outros aspectos essa igualdade real não foi ainda alcançada, não subsistem razões que justifiquem a intervenção do Provedor de Justiça sobre a matéria.


 





Notas de rodapé:


(1) As disposições normativas indicadas nos números seguintes referem-se, salvo indicação expressa em contrário, à Lei n.º 78/2001.
voltar atrás


(2) Cfr., ainda, o art. 16º da Portaria n.º 1112/2005.
voltar atrás


(3) Apesar de a Lei incluir no elenco de requisitos do art. 31º o “ser preferencialmente residente na área territorial abrangida pelo julgado de paz”, cremos que não se trata, em rigor, de um requisito de exercício da actividade, mas antes de um critério de selecção.
voltar atrás


(4) A Portaria n.º 202/2002, de 3.7, criou a Comissão de Fiscalização da Actividade dos Mediadores Inscritos nas Listas dos Julgados de Paz de Lisboa, Oliveira do Bairro, Seixal e Vila Nova de Gaia. Tanto quanto foi possível verificar, não foram criadas outras comissões com a mesma natureza.
voltar atrás


(5) Jorge Miranda, in Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra Editora, 2005, pag. 475.
voltar atrás


(6) Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 474/89 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 14º, pp. 77).
voltar atrás


(7) Acórdão identificado na nota anterior e, posteriormente, Acórdãos n.ºs 91/85, ATC, vol. 5º, pp. 277 e ss.; 666/94, ATC, vol. 29, pp. 349 e ss.; 169/90, ATC, vol. 16º, pp. 63 e ss.; 188/92, ATC, vol. 22º, pp. 455 e ss.; e 328/94, ATC, vol. 27º, pp. 963 e ss, e 187/01, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/.
voltar atrás


(8) Estava em causa, no Acórdão citado, não só a liberdade de trabalho como a liberdade de iniciativa privada.
voltar atrás


(9) Cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, direitos Fundamentais, 3ª ed., Coimbra Editora, 2000, pags. 392 e segs.
voltar atrás


(10) Mesmo autor, in Constituição Portuguesa Anotada, I, pag. 588.
voltar atrás


(11) Cfr. Acórdão n.º 148/94, DR, I-A, de 3.5.94. Apenas foram declaradas inconstitucionais as normas desta Lei que permitiam que, em determinados anos lectivos, a propina excedesse 25% de valor fixado em função das despesas de funcionamento e do número de alunos e as que não fixavam um limite máximo para a fixação da taxa de matrícula.
voltar atrás


(12) Acórdão n.º 497/89, in ATC, vol. 14º. pag. 227.
voltar atrás