PARECER


Entidade visada: Ordem dos Médicos
Proc.º: R-5211/06
Área: A6


Assunto: Código Deontológico; Ordem dos Médicos.




Em exposição apresentada ao Provedor de Justiça, observando-se ser o disposto no art.º 47.º, n.º 3, do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM) mais restritivo do que dispõe actualmente o Código Penal (CP), no seu art.º 142.º, ao excluir a punibilidade, em certas circunstâncias, de factos que recairiam sob a alçada do disposto no respectivo art.º 140.º, conclui-se pedindo que fosse dirigida recomendação ou parecer à Ordem dos Médicos, no sentido da superação da divergência apontada.



Como centro da pretensão, e do fundamento que se lhe quis dar, cite-se o n.º 25 da exposição em causa, ao defender que o “art.º 47.º do CD[OM] deve (…) acompanhar a legislação em vigor, qualquer que seja ela, não podendo em circunstância alguma restringi-la ou boicotá-la, anulando-lhe o alcance que o Estado de Direito pretendeu dar-lhe.”



Não se concordando, nem com as premissas, nem com as conclusões, tudo se deverá a um equívoco quanto à necessária distinção entre normas deontológicas e normas jurídicas, e ao papel indubitavelmente diverso que tem a lei penal (ainda que numa vertente excludente da ilicitude) e o acervo deontológico elaborado no decurso de gerações por determinada classe profissional.



Na verdade, não cabe ao Provedor de Justiça, nem a terceiro, forçar a classe médica a adoptar esta ou aquela regra de conduta deontológica. No respeito, claro está, de grandes princípios, esses sim estruturantes do Estado de Direito democrático, como o da igualdade ou, também, o da legalidade, mas apenas no plano das condutas impostas, foi o próprio Estado que, em aplicação de faculdade hoje expressamente consagrada na Constituição (art.º 267.º, n.º 4), entendeu constituir uma associação pública na qual obrigatoriamente tivessem assento todos aqueles que em Portugal se dedicam à actividade médica, cabendo-lhes a eles, nos órgãos estatutariamente estabelecidos, deliberar sobre a sua própria deontologia.



Nos médicos como nos advogados, não parece vir contestada a legitimidade constitucional desta auto-regulação profissional, sendo, evidentemente, qualquer pessoa livre de defender de jure condendo a extinção das Ordens e a sujeição a uma entidade pública da fiscalização da actividade dos profissionais em causa, com a formulação heterónoma de regras deontológicas ou sem elas.



Sendo outra, todavia, a opção do legislador, democraticamente legitimado para tanto e não violando nenhuma regra ou princípio constitucional, não tem cabimento a leitura feita quanto à relação entre o normativo deontológico e o que se extrai dos art.ºs 140.º a 142.º do CP.



Poder-se-ia, numa leitura superficial, argumentar que o facto de existir uma norma despenalizadora não implica a licitude do comportamento em causa. Defender o contrário seria reduzir as várias formas de ilicitude à ilicitude penal, e sabe-se que assim não é.



Assim, determinada conduta, não punida penalmente, pode ser alvo de reacção da ordem jurídica a outros níveis, como o contra-ordenacional ou o da mera responsabilidade civil. Constitui, dessa forma, poderoso obstáculo para se poder acolher o raciocínio desenvolvido na exposição a que respondo não se demonstrar que uma conduta não penalmente ilícita não pode, em caso algum, ser deontologicamente ilícita.



Se assim se demonstrasse, bem se consideraria tal consequência como o dobre a finados por qualquer norma de cariz deontológico que se imaginasse, na medida em que a mesma, afinal, só poderia repetir, com inutilidade redundante, o disposto em norma incriminadora.



Sendo certa a tipicidade da norma penal incriminadora, é possível encontrar, nas mais variadas profissões, normas de cariz deontológico que censuram condutas que não se subsumem a qualquer norma daquele tipo. Sendo, assim, penalmente lícitas (ou não ilícitas) as condutas em causa, poderia a queixosa, coerentemente, defender a impossibilidade da censura ética ou deontológica ínsita nas normas próprias de cada profissão.



Concordando-se ou não com a norma do art.º 47.º do CDOM (e cada qual terá a sua opinião, e a classe médica, no seu conjunto, a sua), não se pode acompanhar também o raciocínio feito a partir da previsão da objecção de consciência, como estabelecido no art.º 30.º do CDOM.



Este instrumento existe para salvaguardar os médicos que entendam dever assumir condutas não proibidas pelo CDOM (e, já agora, pela lei geral), em oposição a condutas que outrem lhes pudesse querer impor.



Já não pode a existência do mesmo ser argumento para dispensar (como parece defender a queixosa, pelo menos neste caso) a existência de um acervo de regras deontológicas, que se imponham aos médicos no exercício da sua actividade. Concorde-se ou não com o seu teor concreto, e não é sobre este aspecto que aqui se pronuncia o Provedor de Justiça, as normas do CDOM representam um quadro de valores proposto aos médicos portugueses, sendo a sua substituição por um eventual artigo único sobre objecção de consciência a verdadeira supressão das competências da Ordem em matéria deontológica.



Poder-se-á obtemperar que, no domínio da norma actual, como no da sua alteração eventual, caso, na sequência do Referendo já marcado, tal assim seja decidido pelas formas adequadas, a existência desta norma deontológica impede que seja prestado, às mulheres que o decidam, o conjunto de circunstancialismos que evitam a punição do aborto, tal como descrito hoje no art.º 142.º do CP e amanhã, eventualmente, na sequência de previsão legal que ocorra por via da citada consulta referendária.



Sendo certo que, no caso do aborto, a liberdade de consciência, no que toca à omissão de comportamentos, será sempre de respeitar (1), suscitar-se-ia então a questão, muito legítima, de saber se liberdade de consciência de pendor contrário, isto é, de um médico que entendesse, ao contrário do que parece decorrer do actual CDOM, ser adequada a prática de aborto nas condições que exorbitam o seu art.º 47.º, n.º 3, mas ainda se enquadram no actual art.º 142.º do CP ou de norma que o venha a substituir, devia ou não merecer idêntica protecção, neste caso contra uma eventual acção punitiva por parte da Ordem dos Médicos.



A resposta não seria fácil, na medida em se quisesse reduzir o escopo desta análise às duas normas em apreço, a do CDOM e a do CP, na medida em que, como disse, serão inúmeros os casos de condutas penalmente lícitas que são deontologicamente condenadas e punidas.



Todavia, enxertando aqui a dimensão activa que o Estado assume neste processo (2), não parece que seja viável à Ordem dos Médicos (como a qualquer outra associação pública profissional, em situação análoga) conferir outra utilidade à norma em causa do CDOM que não a de uma orientação ética, de um padrão de conduta tido como socialmente adequado pela classe profissional no seu conjunto.



Tal como foi oportunamente noticiado, aliás em reacção pública à apresentação da presente queixa, não teria pertinência qualquer decisão punitiva dos médicos que, cumprindo hoje com o disposto no art.º 142.º do CP, violassem o art.º 47.º, n.º 3, do CDOM, este entendimento sendo bastante reforçado com a garantia jurisdicional de que dispõem todos os médicos sancionados pela sua Ordem.



A maior parte da exposição em apreço critica o teor concreto da norma do CDOM em apreço, defendendo a sua alteração, pelo menos para os termos hoje previstos no CP e, como também é público, para aqueles que se visam consagrar em caso de resposta afirmativa do eleitorado à pergunta referendária de 11 de Fevereiro p. f.



No plano do CP, o processo que está em curso dispensa considerações adicionais. No que toca à deontologia da classe médica, cabendo apenas a esta defini-la, só se pode aplaudir iniciativas que, no seio da mesma mas também ponderando contributos da comunidade, assegurem a correcta definição de regras éticas que, correspondendo a valores civilizacionais profundos, possam em cada momento exprimi-los da melhor forma.



Nesse campo, as iniciativas que foram já anunciadas para debate destas questões, no quadro da Ordem como fora dela, e que se espera se concretizem, podem ser um contributo positivo para o aprofundamento da reflexão sobre uma ciência e arte tão nobre e necessária, qual seja a Medicina, e num aspecto tão delicado como fulcral à mesma.


 






Notas de rodapé:


(1) Admito algumas zonas mais cinzentas, mas estas sempre cobertas pelo CDOM.


(2) Repare-se na exigência feita pela lei penal de a intervenção decorrer em “estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido”.


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