A Sua Excelência
O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Paços do Concelho
Praça do Município
1100 – 365  LISBOA
 

 

Vª Ref.ª
Vª Comunicação
Nossa Ref.ª
Proc. R-3232/09 (A1)
Proc. R-4964/09 (A1)
 
Assunto: estacionamento tarifado à superfície – taxa – fundamentação
 

 

RECOMENDAÇÃO N.º 1/A/2012
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)

I
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

 
1. A partir de diversas queixas que me vêm sendo apresentadas, entendi analisar, no confronto com a lei e com os princípios gerais, a questão do agravamento da tarifa liquidada pela EMPRESA MUNICIPAL DE ESTACIONAMENTO EM LISBOA, E.E.M., ao emitir o dístico que identifica um automóvel sob propriedade de um residente e lhe permite estacionar sem encargos na respectiva Zona de Estacionamento de Duração Limitada ou em Zona de Acesso Condicionado.

2. A obtenção do dístico de residente, para além de implicar o pagamento dos emolumentos devidos pelos custos administrativos, encontra-se hoje sujeita a uma taxa cujo montante aumenta progressivamente segundo o número de dísticos emitidos para cada fogo, ou seja, o número de automóveis de cada agregado familiar.

3. A emissão do primeiro dístico está isenta desta taxa. Já para o segundo dístico de residente, a tarifa cobrada é de € 30,00 e, para o terceiro, de €120,00.

4. Deixa-me reservas verificar que a extensão do agregado familiar não é tomada em linha de conta. A posse de dois ou três veículos numa família numerosa pode corresponder a uma necessidade. Já será simples comodidade ou até algo meramente voluptuário a posse de um número de automóveis inferior ao número de residentes com habilitação legal para conduzir.

5. Por outro lado, não se encontra nos Regulamentos Municipais de Estacionamento nas Coroas Tarifadas, nem nos Regulamentos Municipais das Zonas de Acesso Automóvel Condicionado , justificação alguma para o valor desta taxa ou sequer para o seu agravamento.

6. Isto, em contravenção ao disposto no artigo 8.º, n.º 2, alínea c), do Regime Geral das Taxas das Autarquia Locais (Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro), segundo o qual, os regulamentos que criam taxas municipais contêm, sob pena de nulidade, a fundamentação económico-financeira relativa ao valor fixado, designadamente os custos directos e indirectos, os encargos financeiros, amortizações e futuros investimentos realizados ou a realizar pela autarquia.

II
CONTRADITÓRIO

 

7. Para elucidação da questão controvertida, foram pedidas explicações à EMEL.

8. Pretendia-se conhecer a justificação da taxa e do seu agravamento, atentas as dúvidas que se colocavam à luz dos princípios que regem as relações jurídico-tributárias geradoras da obrigação de pagamento de taxas às autarquias locais.

9. Respondeu-nos que a diferenciação do valor da tarifa em função do número de viaturas por fogo resultaria da política de estacionamento e de gestão de espaço público definida pela CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA, a quem devolveu a questão.

10. Em 23/3/2011, foi requisitado esclarecimento ao Senhor Vereador com o Pelouro da Mobilidade e Infra-estruturas Viárias, indicando não se vislumbrar, à luz do princípio da proporcionalidade, os critérios que teriam determinado aumento do valor da componente variável da taxa liquidada pela emissão dos cartões de residente.

11. O Senhor Vereador transmitiu-nos cópia de informação elaborada pela Administração da EMEL, em 22 de Junho de 2001 , em cujo teor se reiterava a posição anteriormente assumida. Em breves palavras, constituiria objectivo daquela empresa gerir o serviço de estacionamento público conforme fosse definido pela Câmara Municipal de Lisboa, procurando desenvolver um sistema que mitigasse o desequilíbrio entre a oferta e a procura de lugares disponíveis e respondesse aos movimentos pendulares diários de veículos.

12. Manteve-se, assim, sem pronúncia a questão do cumprimento do disposto no citado artigo. 8.º, n.º 2, alínea c), do Regime Geral das Taxas das Autarquia Locais.

III

Pressupostos e requisitos das taxas municipais

 

13. A Constituição da República Portuguesa estabelece uma divisão das várias figuras tributárias, classificando-as como impostos, como taxas ou como contribuições especiais. Desta distinção resultam diferentes regimes jurídico constitucionais.

14. Em relação aos impostos, o princípio da legalidade fiscal combina o princípio da tipicidade com o princípio da reserva de lei formal – só podem ser criados por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei do Governo, mediante autorização da Assembleia – artigo 103.º, n.º 2 e artigo 165.º, n.º 1, alínea i).

15. Quanto às taxas, apenas a fixação do seu regime geral se encontra sujeita com a mesma intensidade ao princípio da legalidade fiscal e à reserva relativa de competência da Assembleia da República: desde que o regime geral seja aprovado por lei, as taxas podem ser criadas por outros entes públicos, como é o caso das autarquias locais.

16. Por seu turno, enquanto os impostos estão vinculados ao princípio da capacidade contributiva, já as taxas e outros tributos assentam no princípio da proporcionalidade taxa/prestação ou taxa/custos específicos causados à comunidade .

17. Este elemento distintivo reside na natureza unilateral ou bilateral do tributo: ao imposto não corresponde uma contraprestação especifica a favor do contribuinte, ao contrário da taxa, em que à prestação do particular corresponde uma contraprestação específica por parte do Estado, ou de outro ente público, podendo identificar-se um benefício individualizado .

18. O Tribunal Constitucional tem tratado frequentemente da distinção entre as figuras da taxa e do imposto, podendo ler-se num dos seus arestos:

(…) Tanto na jurisprudência uniforme do Tribunal, como na orientação unânime da doutrina, um elemento ou pressuposto estrutural há-de, desde logo e necessariamente, verificar-se, para que determinado tributo se possa qualificar como uma ‘taxa’, qual seja o da sua ‘bilateralidade’: traduz-se esta no facto de ao seu pagamento corresponder uma certa ‘contraprestação’ específica, por parte do Estado (ou de outra entidade pública). Se tal não acontecer, teremos um ‘imposto’ (ou uma figura tributária que, do ponto de vista constitucional, deve, pelo menos, ser tratada como tal). (…) Se se não divisarem características de onde decorra a ‘bilateralidade’ da imposição pecuniária, nada mais será preciso indagar para firmar a conclusão de harmonia com a qual é de arredar a qualificação dessa imposição como ‘taxa’  .

19. A Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro (LGT), desenvolve, embora sem grande densidade, a divisão dos tributos entre impostos e taxas, adiantando, no artigo 4.º, que os primeiros “…assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património” e as segundas “…assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares” (sublinhado nosso).

20. Mais se estabelece na LGT, em consonância com princípio constitucional da legalidade fiscal, que o regime geral das taxas deve constar de lei especial.

21. No que respeita aos municípios, a lei especial a que se refere a LGT é a citada Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL).

22.  Por seu turno, dispõe-se na Lei das Finanças Locais (LFL)  que “os municípios podem criar taxas nos termos do regime geral das taxas das autarquias locais” e acrescenta-se que a criação de taxas pelos municípios está subordinada aos princípios da equivalência jurídica, da justa repartição dos encargos públicos e da publicidade, incidindo sobre as utilidades prestadas aos particulares, geradas pela actividade dos municípios ou resultantes de investimentos municipais (artigo 15.º, n.º 1 e n.º 2). Remete-se, ao fim e ao cabo, para o citado RGTAL.

23. Ora, este pouco mais faz que retomar a definição dada pelo artigo 4.º da LGT, preceituando que “as taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei.”.

24. Já no artigo 6º é exemplificada a ampla incidência objectiva das taxas municipais, concretizando-se a definição do artigo 3º em termos amplos e que não constituem uma lista exaustiva:

1. As taxas municipais incidem sobre utilidades prestadas aos articulares ou geradas pela actividade dos municípios, designadamente:
(…)
d)  Pela gestão de tráfego e de áreas de estacionamento;
(…)
2. As taxas municipais podem também incidir sobre a realização de actividades dos particulares geradoras de impacto ambiental negativo.

25. Atendendo à sua natureza bilateral, as taxas fundamentam se nos princípios da equivalência jurídica, da proporcionalidade (artigo 15.º, n.º 2, da LFL e artigo 4.º do RGTAL) e da justa repartição dos encargos públicos (artigo 5.º do RGTAL).

26. Do princípio da justa repartição dos encargos públicos resulta que as taxas devem assumir uma dimensão social, ao determinar que, a par do interesse público local e da satisfação das necessidades financeiras das autarquias, devem prosseguir a promoção de finalidades sociais e de qualificação urbanística, territorial e ambiental.

27. A equivalência não corresponde a uma paridade estritamente económica. Basta às taxas serem calculadas de acordo com o princípio da proporcionalidade, não podendo exceder o custo da actividade pública local ou o benefício auferido pelo particular.

28. Acresce que, o valor das taxas, sempre no respeito da proporcionalidade, pode ser fixado com base em critérios de moderação ou desincentivo à prática de certos actos ou operações, especialmente em atenção às actividades com impacto no ambiente (artigo 4.º, n.º 2 do RGTAL).

29. No que respeita à criação e à alteração das taxas municipais, o RGTAL estabelece os princípios que devem nortear estes actos (artigos 8.º e 9.º) “… no sentido de pôr termo a uma prática relativamente frequente de criação de taxas municipais com valores completamente arbitrários“  e por forma a  proteger o contribuinte.

30. Por um lado, é atribuída à assembleia municipal a competência da criação ou alteração das taxas mediante a aprovação, ou a modificação, do correspondente regulamento, ainda que por iniciativa do executivo.

31. Por outro lado, consagra-se o princípio da justificação económico financeira do quantitativo das taxas, nos termos do qual o regulamento que cria, ou altera, as taxas deve conter a fundamentação económico-financeira relativa ao seu valor, designadamente os custos directos e indirectos, os encargos financeiros, amortizações e futuros investimentos realizados ou a realizar pelo município.

32. A imposição aos municípios de especificarem o cálculo que fundamenta o quantitativo das taxas contribui decisivamente para garantir o respeito da proporcionalidade do tributo , ao ponto de a falta de justificação económico-financeira ferir de nulidade as normas do regulamento omisso (artigo 8.º, n.º 2).

IV
ANÁLISE

 

33. Constitui atribuição dos municípios regular o estacionamento nos seus respectivos territórios, designadamente através de regulamentos aprovados pelas assembleia municipais, podendo criar taxas que tenham por objecto a gestão de tráfego e de áreas de estacionamento.

34. Neste domínio, será de admitir o agravamento da taxa devida pela segunda e ulteriores isenções, considerando pretendido desincentivo à utilização de veículos privados. Conforme acima mencionado no artigo 6.º, n.º 2, do RGTAL encontra-se expressamente previsto que as taxas municipais incidam sobre actividades dos particulares com efeito ambiental negativo.

35. No entanto, a criação destas taxas – designadas tarifas ao tratar-se de um tipo especial de taxa que não respeita a serviços públicos que sejam por essência da titularidade do Estado e que não corresponde às funções institucionais fundamentais próprias da Administração Pública  – não pode deixar de obedecer aos princípios consagrados em sede do regime geral das taxas dos municípios .

36. E, como se viu, o princípio da fundamentação económico-financeira consagrado no artigo 8.º, n.º2, do RGTAL, prossegue tanto a garantia da proporcionalidade, procurando evitar arbitrariedades da fixação do quantitativo das taxas, como a protecção do particular que beneficia da prestação pública ou que vê removido um obstáculo a determinada conduta e que, assim, passa a conhecer a razoabilidade do montante estabelecido.

37. O que resulta da instrução do presente processo é que a Câmara Municipal presidida por V.Ex.a. não justificou o valor das taxas estabelecidas nos Regulamentos Municipais de Estacionamento nas Coroas Tarifadas, ou nos Regulamentos Municipais das Zonas de Acesso Automóvel Condicionado.

38. Não se encontra explicação sobre o modo como os custos e os encargos públicos foram ponderados nem se esclarece dentro de que parâmetros foi estimado o benefício para o particular.

39. Também ficou sem fundamentação o agravamento da tarifa devida pela emissão do segundo e terceiro dístico de residente, sugerindo o princípio da justa repartição dos encargos públicos que fosse tida em consideração a composição do agregado familiar e as suas necessidades.

40. Por último, não pode deixar de se chamar a atenção para a circunstância de que a falta de fundamentação económico-financeira das taxas das autarquias locais afecta a validade do acto que as cria, ou altera, tornando-o nulo.

41. Em última análise, a Câmara Municipal de Lisboa pode ver-se confrontada com pedido de declaração de nulidade dos Regulamentos Municipais de Estacionamento nas Coroas Tarifadas, e dos Regulamentos Municipais das Zonas de Acesso Automóvel Condicionado. Ora, não é difícil antever as implicações que a eventual declaração de nulidade traria ao nível da responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa, designadamente em relação aos pedidos de devolução dos montantes de taxas pagas pelos particulares.

 

 
V
CONCLUSÕES

 

Assim, nos termos do disposto no artigo 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, RECOMENDO que a Câmara Municipal superiormente presidida por V.Ex.a., em cumprimento do que se estabelece no art. 8.º, n.º 2, alínea c), do Regime Geral das Taxas das Autarquia Locais, submeta à apreciação da Assembleia Municipal a fundamentação económico-financeira das taxas e tarifas previstas nos Regulamentos Municipais de Estacionamento nas Coroas Tarifadas e nos Regulamentos Municipais das Zonas de Acesso Automóvel Condicionado.
 
 
Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.
 
Queira aceitar, Senhor Presidente, os meus melhores cumprimentos,
 
 

O PROVEDOR DE JUSTIÇA,
 
 
(Alfredo José de Sousa)