A Sua Excelência
O Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Praça do Município
1149-014 LISBOA

 

Vª Ref.ª
Of.º1276/GVPMS/11 Vª Comunicação
6.Out.2011
Nossa Ref.ª
Proc. R-3316/11(A1)

  
Assunto: operações urbanísticas de impacte semelhante a loteamentos – Regulamento Municipal de Urbanização e de Edificação – artigo 6.º

 

RECOMENDAÇÃO N.º 2/B/2012

(artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)

I

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

1. Tenho a honra de me dirigir a Vossa Excelência, no cumprimento da missão constitucional que a Lei n.º 9/91, de 9 de abril, regula e desenvolve, ao prever a formulação de recomendações orientadas para suprir deficiências normativas encontradas (artigo 20.º, n.º 1, alínea b)) e contribuir para o aperfeiçoamento da actividade administrativa (artigo 21.º, n.º 1, alínea c)).

2. Foi-me apresentada uma queixa, em cujo teor, entre outros aspetos que não considerei atendíveis, se arguia a ilegalidade do disposto no artigo 6.º do Regulamento Municipal de Urbanização e de Edificação de Lisboa, publicado no Diário da República, 2ª Série, n.º 8, de 13 de janeiro de 2009:

Artigo 6.º
Impacte relevante e ou semelhante a uma operação de loteamento
Consideram-se operações urbanísticas com impacte relevante ou que determinem, em termos urbanísticos, impactes semelhantes a uma operação de loteamento, para efeitos do n.º 5 do artigo 44.º e do n.º 5 do artigo 57.º, ambos do RJUE, as obras de construção nova ou as obras de ampliação em edificações existentes de que resulte acréscimo de superfície de pavimento, em área não abrangida por operação de loteamento, em que se verifique uma das seguintes situações:
a) A superfície de pavimento resultante seja igual ou superior a 1800 m2;
b) Disponham de mais do que uma caixa de escadas de acesso comum a frações ou unidades independentes, excluindo as escadas de emergência e as unidades independentes de estacionamento;
c) Disponham de cinco ou mais frações, ou unidades independentes, com acesso direto a partir do espaço exterior à edificação;
d) Exijam a construção de novos arruamentos locais ou quaisquer outras infraestruturas locais.

3. Sustenta-se na queixa que esta norma colide com uma das normas que precisamente invoca como habilitação.

4. Assim, e com efeito, no artigo 57.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (aprovado pelo Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, na redação da Lei n.º 60/2007, de 4 de setembro), determina-se que, por regulamento municipal, seja definido o que se entende, localmente, como «impactes semelhantes aos de uma operação de loteamento».

5. Isto, a fim de poder impor certos ónus e encargos urbanísticos, que, à partida, estariam reservados às operações de loteamento, também a outras operações urbanísticas, no pressuposto de que «respeitem a edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si».

6. No entender da queixosa, o citado preceito do regulamento municipal abdica deste último pressuposto, dado que faz recair os ditos ónus e encargos sobre operações urbanísticas que se limitem a uma única edificação.

7. Em cumprimento do dever de prévia audição, o Senhor Provedor Adjunto de Justiça, pediu ao Senhor Vereador e Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa que se pronunciasse acerca das reservas que nos suscitou aquela concreta norma na sua devida conformidade com o disposto no artigo 57.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.

8. Fê-lo através do ofício n.º 13406, de 29/09/2011, expondo que «se esta norma tem como pressuposto um conjunto de edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si, já no artigo 6.º do RMUEL, em especial, por via do seu n.º 1, alínea a), não se afasta a aplicação a uma só edificação, contanto que a área de pavimento iguale ou ultrapasse 1 800 m²».

9. Em resposta, através do ofício n.º 1276/GVPMS/11, de 6/10/2011, o Senhor Vice-Presidente opôs nada haver a reprovar ao preceito regulamentar, devendo «considerar-se tanto os novos edifícios isolados como os novos edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si».

10. E, em apoio desta posição, invoca o disposto no artigo 44.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, norma essa que permite aos municípios imporem cedências ou compensações, não apenas aos promotores de loteamentos, como também aos promotores de outras operações urbanísticas, qualificadas em regulamento municipal, como possuindo «impacte relevante».

11. Informou-nos, do mesmo passo, estar em curso uma alteração ao regulamento municipal visado na queixa, sem, contudo, se prever nenhuma modificação substancial ao artigo 6.º.

II

DOS ENCARGOS COM OBRAS RESPEITANTES A CONJUNTOS DE EDIFÍCIOS CONTÍGUOS E FUNCIONALMENTE LIGADOS ENTRE SI

12. Sem quebra da mais elevada consideração, os argumentos deduzidos pelo Senhor Vice-Presidente não me deixam convencido.

13. Ambas as normas do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (a do artigo 57.º, n.º 5, e, mais tarde, a do artigo 44.º, n.º 5) vieram, com inteira justiça, mitigar a diferença abissal dos encargos urbanísticos impostos às operações de loteamento – as que pressupõem ou determinam a divisão do solo – e outras operações materiais com impactes iguais ou superiores na cidade, seja ao nível das infraestruturas, seja ao nível da densidade da utilização.

14. Tradicionalmente, na verdade, só aos loteamentos era exigido que guardassem uma determinada quota de áreas destinadas a espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas e outros equipamentos afins: algumas a manter como privativas dos adquirentes dos lotes, outras a ceder gratuitamente ao município para fins de concreta utilidade pública.

15. E, porque a necessidade do loteamento se indiciava pela prognose de uma pluralidade de edificações no mesmo prédio, era claramente vantajoso para o promotor apresentar uma solução arquitetónica que convencesse as autoridades municipais de se tratar, não de várias, mas de uma edificação apenas.

16. Ou, pelo menos, edificações sem autonomia, designadamente por se perfilarem em contiguidade e por dependerem funcionalmente umas das outras.

17. Avisado andou, pois, o legislador quando reconheceu que muitas e variadas obras de edificação, apesar do impacte urbano extremamente significativo, ficavam desoneradas dos ditos ónus e encargos, bastando lhes que não indiciassem nenhuma repartição dos solos.

18. E, por isso, surgiria o disposto no artigo 57.º, n.º 5, do RJUE, cuja exequibilidade ficaria dependente, porém, do que cada município viesse a definir como «impactes semelhantes a uma operação de loteamento».

19. Cingiu-se, para este efeito, a determinadas obras que respeitem «a edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si».

20. Reunidos estes pressupostos, o promotor, embora sem estar a lotear, terá de guardar uma quota da superfície do imóvel ou dos imóveis para espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas e outros equipamentos afins, a calcular segundo o que se encontrar disposto no plano municipal aplicável (artigo 43.º, n.º2, ex vi do artigo 57.º, n.º 5).

21. E se porventura as áreas de circulação viária e pedonal, espaços verdes e equipamento ficarem para uso exclusivo dos proprietários das edificações servidas – no que podemos identificar um ‘condomínio fechado’, se vier a ser constituída propriedade horizontal, nos termos do artigo 1438.º-A do Código Civil – então, terá de liquidar uma compensação em numerário ou em espécie (artigo 57.º, n.º 6).

22. Subsiste, ainda, apenas para os loteamentos, embora com algumas reduzidas exceções, o encargo com a execução de obras de urbanização, a fim de dotar ou reforçar o local de arruamentos, redes de esgotos e de abastecimento de água, eletricidade, gás e telecomunicações.

 
III

DOS ENCARGOS COM OPERAÇÕES URBANÍSTICAS QUE APRESENTEM IMPACTO RELEVANTE

23. Bem diferente é o que se dispõe no artigo 44.º, n.º 5, do RJUE, ainda que com uma preocupação semelhante: a de reduzir a clivagem entre os encargos a suportar com os loteamentos e o tradicional alívio desses mesmos encargos nas demais operações urbanísticas, independentemente do seu impacto.

24. Ora, justamente, no artigo 44.º, n.º 5, dispõe-se um encargo com cedências e compensações sobre todas as operações urbanísticas (e não apenas as que respeitem a edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si) desde que possuam um impacto relevante, conceito a definir por regulamento municipal.

25. Este encargo pode recair sobre todas as obras de edificação cuja materialidade e densidade da utilização seja de prever como significativa nos efeitos sobre a área envolvente ou mesmo no conjunto do aglomerado urbano.

26. Entendeu a Câmara Municipal de Lisboa, no artigo 6.º do Regulamento de Urbanização e de Edificação, usar de um só critério para definir, por um lado, «impactes semelhantes aos de uma operação de loteamento», concretizando o enunciado do artigo 57.º, n.º 5, da lei, e, por outro lado, «impacte relevante», de modo a concretizar o disposto no artigo 44.º, n.º5.

27. De certo modo, deliberou considerar que a bitola da relevância está na semelhança com o impacto que produziria um loteamento, pese embora os loteamentos tenham impactos completamente diferentes. Basta pôr frente a frente simples operações com dois pequenos lotes e loteamentos vastíssimos com centenas de novas unidades fundiárias.

28. O que, no entanto, já não lhe é possível, é, como fez, acabar por (con)fundir a regulamentação do artigo 57.º, n.º 5 e n.º 6, com a regulamentação do artigo 44.º, n.º 5.

29. Isto, porque, como vimos o encargo de preservar áreas para espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas e outros equipamentos afins, a calcular segundo o que se encontrar disposto no plano municipal aplicável (artigo 43.º, n.º2), não pode atingir edificações isoladas. Apenas os tais conjunto de edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si, como resulta do artigo 57.º, n.º 5.

30. E estes, por sua vez, como resulta do artigo 57.º, n.º 6, só terão de ceder parcelas de terreno ou pagar uma compensação ao município se vedarem as áreas comuns, se as submeterem ao seu uso privativo, exclusivo.

31. Na resposta do Senhor Vice-Presidente, é invocado em abono da legalidade da norma regulamentar o comentário ao artigo 57.º de FERNANDA PAULA OLIVEIRA/MARIA JOSÉ CASTANHEIRA NEVES/DULCE LOPES (Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação Comentado, 2ª edição, p. 327 e p. 388).

32. E é transcrito o comentário produzido, mas não integralmente.

33. Fica por transcrever, precisamente, o trecho em que se afirma, a propósito das obras respeitantes a edifícios contíguos e funcionalmente ligados entre si com impactes semelhantes a um loteamento, o seguinte:

 «…no âmbito das quais não se podem exigir cedências já que a remissão do n.º 5 do artigo 57.º é feita para o artigo 43.º e ao do n.º 6 do mesmo normativo para o n.º 4 do artigo 44.º».

34.  As citadas Autoras, em ulterior edição, confirmam textualmente esta precisão (Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação Comentado, 3ª edição, 2011, Coimbra, p. 452), o que não deixa margem para dúvidas quanto ao exato sentido do que afirmaram.

35.  Pondero que a Câmara Municipal de Lisboa tenha confiado ao artigo 6.º do regulamento a redação que, em seu entender, melhor atenuaria as diferenças que continuam a pesar sobre as operações de loteamento, sobretudo quando persiste alguma falta de nitidez no recorte legislativo entre as operações que se subsumem ao conceito enunciado no artigo 2.º, alínea i), talvez demasiado elíptico e poroso:

 «….As ações que tenham por objeto ou por efeito a constituição de um ou mais lotes destinados, imediata ou subsequentemente, à edificação urbana e que resulta da divisão de um ou vários prédios ou do seu reparcelamento».

36.  Mas a margem de autonomia regulamentar não pode levá-la a desvirtuar o equilíbrio fixado pelo legislador em norma geral e abstrata, ao ponto de impor a uma única edificação – cujos pavimentos somem 1 800 m² (artigo 6.º, alínea a)) – a preservação de áreas para espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas e equipamentos, tal qual como se de um conjunto de edificações se tratasse.

37.  Além do mais, a operação será tributada com a denominada taxa pela realização, manutenção e reforço de infraestruturas urbanísticas (artigo 116.º, n.º 1, do RJUE).

IV
LIMITES DO PODER REGULAMENTAR MUNICIPAL

38. Por outras palavras, se é facultado ao poder regulamentar municipal equiparar operações urbanísticas de impacte relevante e obras com impacte semelhante ao de uma operação de loteamento, e entender que as segundas cabem sempre dentro das primeiras, o que já não lhe assiste é poder modificar o sentido da lei habilitante, neste caso, o disposto nos artigos 57.º, n.º 5, e 44.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.

39. Ao equiparar conceitos que integram a previsão de duas normas diferentes, o município não fica habilitado a fazer cumular as estatuições de uma e de outra norma, como veio a fazer no artigo 6.º do Regulamento Municipal de Urbanização e de Edificação.

40. O município pode exigir cedências ou compensações a operações respeitantes a edifícios contíguos funcionalmente ligados entre si? Apenas dentro dos limites do artigo 57.º, n.º 6. De resto, apenas lhe pode exigir que sejam preservadas certas áreas destinadas a zonas verdes, infraestruturas e equipamentos coletivos (n.º 5).

41. E em relação a uma edificação que, por construção ou ampliação, iguale ou ultrapasse 1 800 m² de superfície de pavimento? Ao considerar tratar-se de uma operação urbanística de «impacte relevante» pode condicionar o seu licenciamento à cedência de parcelas de terreno ou ao pagamento de compensações, mas não pode, por acréscimo, exigir-lhe que preserve um conjunto de áreas privativas de uso comum.

42. A bem dizer, esta última exigência só faz sentido nos conjuntos de edifícios. A contiguidade e a interdependência funcional justamente reclamam áreas comuns, algo que uma edificação isolada não se vê que justifique.

43. Se a lei entendeu proceder a esta distinção, não pode o regulamento subordinado ou de execução furtar-se à diferença de pressupostos e de estatuições de duas normas.

44. E, recorde-se, que é esta a condição dos regulamentos municipais de urbanização e de edificação, na parte em que a lei os incumbe de precisar, concretizar e desenvolver, à luz das particularidades locais (interior/litoral, norte/sul, continente/ilhas): a condição de regulamentos de execução.

45. Se é permitido aos municípios, através dos seus órgãos próprios, aprovar regulamentos autónomos (artigo 241.º da Constituição) e limitarem-se a invocar a norma que lhes confere competência (artigo 112.º, n.º 7, 2ª parte), isso não quer dizer que todo e qualquer regulamento municipal beneficie desta latitude ou dela beneficie em toda a extensão das suas normas.

46.  O Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa confessa-se expressamente como um regulamento de execução na parte em que concretiza específicas normas legislativas que, de resto, e cumprindo a exigência constitucional própria (artigo 112.º, n.º 7, 1ª parte), invoca na nota justificativa: «concretizar e executar as matérias que os artigos 3.º, 6.º-A, 22.º, 24.º, 27.º, 44.º, 55.º, 57.º, do Decreto-lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com a redação atual conferida pela Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, remetem para regulamento municipal».

47. Só no mais se apresenta como um regulamento autónomo, designadamente, para disciplinar aspetos de construção que escaparam ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-lei n.º 38 832, de 7 de agosto de 1951.

48. E é, por isso, que acrescenta na mesma nota justificativa: «…bem como exercer o poder regulamentar que ao Município cabe nas matérias da urbanização e da edificação».

49.  A desconformidade entre regulamento e lei traduz uma ilegalidade que se repercute na validade das normas inferiores.

50. Na parte em que o disposto no artigo 6.º do RMUEL ignora a distinção entre o disposto nos artigos 44.º, n.º 5, e 57.º, n.º 5 e n.º 6, do RJUE, apontando para uma sua aplicação cumulativa, deparamo-nos com a nulidade da norma.

51. Isto quer dizer que o decurso do tempo, não produz efeito algum no vício nem no valor jurídico negativo que lhe está associado. É o que resulta muito claramente dos artigos 74.º e 75.º, n.º 1, do Código do Processo Administrativo, ao facultarem a declaração de ilegalidade a todo tempo e reconhecerem efeitos ex tunc a esta decisão, respetivamente.

52. A bem da certeza jurídica e da prevenção de situações que obriguem o município de Lisboa a ter de rever condições e encargos ilegalmente impostos a certas operações urbanísticas, mostra-se desejável rever, a breve trecho, a sempre citada norma do artigo 6.º do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação.

V
CONCLUSÕES

Em face do que vem exposto, e nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, entendo por bem recomendar à Câmara Municipal superiormente representada por Vossa Excelência que providencie pela alteração do disposto no artigo 6.º do Regulamento Municipal de Urbanização e de Edificação (Diário da República, 2ª Série, n.º 8, de 13 de Janeiro de 2009) em ordem em conformá-lo com a distinção dos pressupostos de aplicação e as estatuições contidas nos artigos 44.º, n.º 5, e 57.º, n.º 5, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.
 Dignar-se-á Vossa Excelência comunicar-me, nos próximos 60 dias, para cumprimento do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.

Queira aceitar, Senhor Presidente, os meus melhores cumprimentos,

O PROVEDOR DE JUSTIÇA,

(Alfredo José de Sousa)