Exm.º Senhor


Secretário-Geral da FENPROF


Rua Fialho de Almeida, 3


1070-128 LISBOA


 


 


Vossa Ref.ª


Vossa Comunicação


Nossa Ref.ª


Proc. R-1877/09 (A6)


Assunto: Regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário. Director.


 


 


1. Reporto-me à exposição dessa Federação através da qual é posta em causa a constitucionalidade e legalidade de alguns dos aspectos que, no âmbito do regime de autonomia, administração e gestão dos estabelecimentos públicos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de Abril, enquadram a eleição e o estatuto legal do órgão director.


Em síntese, as preocupações de V.ªs Ex.ªs reportam-se ao facto de


a) a eleição daquele órgão ser feita por via indirecta, através do conselho geral,


b) de ser antecedida por um procedimento concursal,


c) de as competências do órgão poderem ser delegadas e subdelegadas no subdirector e nos adjuntos, nomeados pelo próprio director, e


d) de o titular do órgão poder não ser um docente ou professor da própria escola.


No entendimento dessa Federação, estas regras violam os princípios da democracia participativa, extraídos desde logo do conceito de Estado de direito democrático a que alude o art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa e, no caso particular da matéria em análise, do art.º 77.º da Constituição, referente à participação democrática no ensino, princípios esses reafirmados e concretizados na Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro).


2. Independentemente das soluções concretas para o efeito encontradas e traduzidas no Decreto-Lei n.º 75/2008, às quais naturalmente voltarei, há que sublinhar, antes de mais, que parece inequívoca a intenção do legislador(1) de desenvolver, através do regime consubstanciado naquele diploma, os princípios da democracia participativa aplicados à administração e gestão do sistema educativo amplamente invocados na Lei de Bases.


De facto, dos art.ºs 3.º, alínea l), 46.º, n.ºs 1 e 2, e 48.º, n.ºs 2 e 4, da Lei de Bases do Sistema Educativo, resultarão as seguintes orientações:


a) O sistema educativo deve contribuir para o desenvolvimento do espírito e prática democráticos, através da adopção de estruturas e processos participativos designadamente na administração e gestão do sistema escolar, nestes se integrando todos os intervenientes no processo educativo, em especial os alunos, os docentes e as famílias;


b) A administração e gestão do sistema educativo devem assegurar o respeito pelas regras de democraticidade e de participação tendo em vista objectivos pedagógicos e educativos, nomeadamente no domínio da formação social e cívica;


c) O sistema educativo deve ser dotado de estruturas administrativas que assegurem a sua interligação com a comunidade mediante adequados graus de participação dos professores, dos alunos, das famílias, das autarquias, de entidades representativas das actividades sociais, económicas e culturais e de instituições de carácter científico;


d) Em cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos de ensino a administração e gestão orientam-se por princípios de democraticidade e de participação de todos os implicados no processo educativo, tendo em atenção as características específicas de cada nível de educação e ensino;


e) A direcção de cada estabelecimento ou grupo de estabelecimentos dos ensinos básico e secundário é assegurada por órgãos próprios, para os quais são democraticamente eleitos os representantes de professores, alunos e pessoal não docente, e apoiada por órgãos consultivos e por serviços especializados.


3. Ora, o Decreto-Lei n.º 75/2008 começa por enunciar, nos respectivos art.ºs 3.º e 4.º, de forma genérica, os mesmíssimos princípios e objectivos constantes da Lei de Bases, ressalvando, no n.º 2 do art.º 4.º, que no respeito por esses princípios e objectivos e pelas regras estabelecidas no diploma, “admite-se a diversidade de soluções organizativas a adoptar pelos agrupamentos de escolas e pelas escolas não agrupadas no exercício da sua autonomia organizacional, em particular no que concerne à organização pedagógica”.


As regras, relevantes para esta análise, que o diploma estabelece para a concretização dos princípios e objectivos de democraticidade e de participação (e também de descentralização) enunciados, são as seguintes:


a) A administração e gestão dos agrupamentos de escolas e das escolas não agrupadas é assegurada por órgãos próprios, nomeadamente o conselho geral, o director, o conselho pedagógico e o conselho administrativo;


b) O conselho geral é o órgão de direcção estratégica responsável pela definição das linhas orientadoras da actividade da escola – aprovação das regras fundamentais de funcionamento da escola (regulamento interno), decisões estratégicas e de planeamento (projecto educativo e plano de actividades) e acompanhamento da respectiva concretização (relatório anual de actividades);


c) Este órgão assegura a participação e a representação da comunidade educativa, integrando representantes do pessoal docente, do pessoal não docente, dos pais e encarregados de educação, dos alunos, do município e da comunidade local (instituições, organizações e actividades de carácter económico, social, cultural e científico);


d) O número (necessariamente ímpar) de elementos do órgão é no máximo de 21 e o número de representantes do pessoal docente e não docente, no seu conjunto, não pode ser superior a 50% da totalidade dos membros do órgão – precisamente como forma de se garantir que outros pontos de vista da comunidade interna (alunos e pais) e externa (comunidade local) à escola sejam respeitados;


e) Os representantes dos alunos, do pessoal docente, do pessoal não docente, dos pais e encarregados de educação são eleitos (e os representantes do município e da comunidade local designados) de acordo com as regras previamente definidas no diploma;


f) O conselho geral pode constituir, no seu seio, uma comissão permanente para delegação de competências de acompanhamento da actividade do agrupamento de escolas ou escola não agrupada entre as suas reuniões ordinárias, constituída com respeito pela proporcionalidade dos corpos naquele representados;


g) O mandato dos membros do conselho geral tem a duração de quatro anos;


h) O conselho geral elege e destitui o director;


i) Esta eleição é precedida de um procedimento concursal destinado a definir o universo dos candidatos à eleição ao órgão;


j) O director é o órgão (unipessoal) de gestão nas áreas administrativa, financeira e pedagógica, competindo-lhe a presidência do conselho pedagógico e a designação dos responsáveis pelos departamentos curriculares, estruturas de coordenação e supervisão pedagógica;


k) O director pode delegar e subdelegar, no subdirector e nos adjuntos, pelo mesmo nomeado, estas competências;


l) O mandato do director tem a duração de quatro anos, podendo ser reconduzido, por decisão do conselho geral, uma vez; não é permitida a eleição para um quinto mandato consecutivo ou durante o quadriénio imediatamente subsequente ao termo do quarto mandato consecutivo;


m) Os processos eleitorais relativos ao conselho geral e ao director realizam-se por sufrágio secreto e presencial, constando as respectivas regras de regulamentos internos.


4. Partindo do pressuposto de que o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 75/2008 se mostra globalmente adequado ao cumprimento dos princípios e objectivos da democracia participativa impostos pela Lei de Bases conforme acima explicitado – no sentido de que será aquele um dos modelos possíveis de concretização desses princípios –, importará agora apurar se as soluções legais a que alude essa Federação na queixa, relativas ao processo de eleição e ao estatuto do órgão director, constituem ou não desvios a tais princípios.


4.1. Não constituirá um desvio a esses princípios o método indirecto de eleição do director(2) do agrupamento ou escola.


De facto, a Constituição (art.º 113.º, n.º 1) apenas impõe o sufrágio directo como regra geral de designação dos titulares dos órgãos electivos da soberania, das regiões autónomas e do poder local.


E se é certo que os princípios gerais a que alude o mencionado preceito constitucional – sufrágio directo, secreto e periódico – serão tendencialmente princípios universais de direito eleitoral, isto é, aplicáveis não só nas eleições para os órgãos políticos como nas restantes eleições realizadas no âmbito do direito administrativo ou civil, a verdade também é que o núcleo essencial de garantia da democracia residirá, quanto a estas eleições, no carácter secreto e periódico das mesmas – o primeiro como garantia incontornável da liberdade individual, o segundo como forma de se assegurar a necessária rotatividade dos cargos eleitos.


Ora, a eleição do órgão director dos agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas respeita os princípios do sufrágio secreto e periódico, como resulta inequívoco da legislação aplicável.


A eleição indirecta do director – através de um colégio intermediário, no caso, o conselho geral –, não lhe retira legitimidade democrática. Na verdade, os “grandes eleitores” com assento neste órgão, como representantes dos docentes, não docentes, alunos e pais, estão pelos mesmos mandatados para o efeito, funcionando aqui em pleno as regras aplicáveis à democracia representativa.


De resto, tal sistema beneficiará o objectivo da representação proporcional, logo da igualdade, no processo eleitoral do director. De facto, a constituição do conselho geral obedece, como vimos, a um conjunto de regras que visam não só assegurar a representatividade de todos os intervenientes no processo educativo, como garantir que nenhum dos corpos no mesmo representados tenha a maioria dos lugares.


Conforme referem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação ao art.º 77.º da Constituição(3) :


“A gestão democrática das escolas (…) pressupõe que a gestão escolar não compete exclusivamente, no todo ou em parte, ao titular do estabelecimento escolar (Estado, etc.), ou a alguém por ele nomeado; mas, sim, a órgãos próprios da escola, eleitos, pelo menos em parte, pela colectividade escolar, com participação de professores e alunos. Compete à lei (…) definir os termos do exercício deste direito. (…) Naturalmente que existe uma grande margem de conformação legislativa nessa definição (…). Seguramente, nessa liberdade de conformação cabe uma grande margem de diferenciação entre os tipos de escolas (…) e entre a dimensão da intervenção dos dois grupos da colectividade escolar mencionados na Constituição (os professores e os alunos), não estando a lei obrigada a um princípio de paridade, nem lhe estando vedada a possibilidade de fazer participar também outros grupos (v.g. pessoal não docente, representantes dos pais e da comunidade em que a escola se insere).


(…)


O direito de participação na gestão constitui também uma garantia de autonomia das escolas, a qual, sem estar constitucionalmente imposta fora das universidades, constitui hoje uma tendência crescente (definição do projecto pedagógico, recrutamento do pessoal, gestão administrativa e financeira, etc.), inclusive como instrumento de responsabilização e de competição entre as escolas, mesmo dentro do serviço público de ensino”.


Ora, a repercussão dos objectivos do pluralismo e da representação proporcional associados à constituição do conselho geral constituirá, em teoria, um elemento de reforço da democracia participativa na eleição do órgão director.


4.2. Também não constituirá um desvio aos mesmos princípios o facto de o director poder delegar e subdelegar as suas competências no subdirector e nos adjuntos, por aquele nomeados.


A delegação e subdelegação de competências e a substituição no âmbito do funcionamento do órgão director estão naturalmente enquadradas pelas regras do Código do Procedimento Administrativo aplicáveis (designadamente art.ºs 35.º a 41.º), com os requisitos e as garantias aí definidos. O estabelecimento, no Decreto-Lei n.º 75/2008, dessa possibilidade satisfaz o requisito da existência de lei habilitante prévia para o efeito.


Diga-se, ainda, que a delegação de competências é, na prática, um importante instrumento viabilizador da eficácia da actuação de um órgão unipessoal, como é o caso.


4.3. O facto de a eleição do director ser precedida de um procedimento concursal tendo em vista a delimitação do universo dos candidatos também não constitui um desvio às mesmas regras.


Na verdade, tal procedimento tem em vista a escolha do conjunto de candidatos que reúnem as condições objectivas para a eleição em causa. Reparem V.ªs Ex.ªs que este procedimento não interfere com o processo de eleição, já que a comissão encarregue do mesmo não pode proceder à seriação dos candidatos (v. art.º 7.º, n.º 5, da Portaria n.º 604/2008, de 9 de Julho, que precisamente define as regras a observar no procedimento concursal em causa).


De notar que a designação de titulares de órgãos electivos exige por natureza um procedimento prévio de delimitação do universo dos candidatos, tendo designadamente em vista garantir que todos eles preenchem os requisitos previstos para a candidatura à correspondente eleição.


No fundo, o procedimento concursal de que falamos acaba por representar, para os membros do conselho geral, um processo consultivo prévio que permite a obtenção de elementos a ponderar na eleição do director.


4.4. Finalmente, no quadro legal descrito, é perfeitamente adequada a solução que não limita as candidaturas a director aos docentes e professores da própria escola. Ao contrário do que é dito por V.ªs Ex.ªs na queixa, solução diferente da estabelecida na lei não resulta nem directa nem reflexamente do estatuído no art.º 48.º, n.º 4, da Lei de Bases.


Desde logo a solução contestada na queixa resolverá, na prática, a situação eventual de não haver, em determinada eleição, candidatos da própria escola ao cargo.


Por outro lado, pretende-se que o titular do cargo tenha não só naturalmente as habilitações profissionais exigidas para o exercício das funções inerentes, como qualidades efectivas de gestão e de liderança que permitam alcançar os objectivos subjacentes à sua criação.


A este propósito, o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 75/2008 é inequívoco, quando se refere à criação do órgão:


“Com este decreto-lei procura-se reforçar as lideranças das escolas, o que constitui reconhecidamente uma das mais necessárias medidas de reorganização do regime de administração escolar. (…) Impunha-se (…) criar condições para que se afirmem boas lideranças e lideranças eficazes, para que em cada escola exista um rosto, um primeiro responsável, dotado da autoridade necessária para desenvolver o projecto educativo da escola e executar localmente as medidas de política educativa. A esse primeiro responsável poderão assim ser assacadas as responsabilidades pela prestação do serviço público de educação e pela gestão dos recursos públicos postos à sua disposição”.


Ora, tendo em vista a eleição do candidato que melhor se adeqúe ao perfil mencionado, impõe-se ao legislador que não limite, através de requisitos supérfluos – como seria um eventual requisito que limitasse as candidaturas aos docentes da própria escola, já que o conhecimento prévio das características de uma escola em concreto não é requisito indispensável ao bom exercício das funções em causa –, essa escolha.


O que não quer dizer que o facto de candidato ser docente da própria escola não possa em concreto favorecer a sua eleição. Ou ao contrário, podendo os eleitores entender que o distanciamento inevitável de um docente vindo de fora da escola e até mesmo do sistema público de ensino, facilitará o exercício das funções inerentes ao cargo.


Este tipo de ponderação vai seguramente ser feita pelos eleitores do órgão, contribuindo para o sentido das opções que legitimamente os eleitores fazem no âmbito de um qualquer processo eleitoral.


5. Por último, diga-se que as observações acima feitas serão aplicáveis, sem necessidade de outras considerações, às questões colocadas na queixa relativamente à eleição do director pelo conselho geral transitório, nos termos permitidos pelo Decreto-Lei n.º 75/2008 nos respectivos art.ºs 61.º e 62.º.


Assim sendo, e pelas razões acima expostas, não acompanho as preocupações expressas na queixa por essa Federação, pelo que não tomei as iniciativas aí pretendidas.


Aproveito a oportunidade para apresentar a V.ªs Ex.ªs os meus melhores cumprimentos,


O Provedor de Justiça,


 


Alfredo José de Sousa


 


[1] Independentemente da declaração formal, expressa no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 75/2008, no sentido de que este desenvolve o regime jurídico estabelecido na Lei de Bases quanto à administração e gestão escolares.


[2] “Aquele em que o cidadão eleitor escolhe directamente os titulares dos órgãos, e não apenas os componentes de um colégio eleitoral intermediário” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição revista,  1993, Coimbra Editora, p. 519).


[3] In “CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4.ª edição revista, 2007, Coimbra Editora, pp. 920 e 921.