Sua Excelência
O Ministro da Saúde
Av. João Crisóstomo, 9, 5º
1049-062 LISBOA

Vossa Ref.ª

Vossa Comunicação

Nossa Ref.ª
Proc. Q-1165/12 (A6)

 

Assunto: Novo regime de acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde

Recomendação n.º 11 /B/2012
(art.º 20.º, n.º 1, b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)

A entrada em vigor e aplicação do novo regime de acesso às prestações do Serviço Nacional de Saúde (SNS), essencialmente no que toca ao mecanismo das taxas moderadoras e condições para a isenção do respetivo pagamento, motivou a apresentação de significativo número de queixas ao Provedor de Justiça.

Abstraindo das dificuldades em concreto sentidas e de algum modo superadas em contato com as estruturas pertinentes do SNS, subsistem vários motivos de preocupação que apenas em sede normativa poderão ser adequadamente dissipados, em termos que não desvirtuem as bases constitucionais que alicerçam o direito à saúde.

Abordarei, de seguida, as seguintes questões:
I) A revisão da tabela de taxas moderadoras.
II) A isenção do pagamento de taxas moderadoras por insuficiência económica e, neste âmbito:
a) A garantia da atualidade do rendimento;
b) A determinação do rendimento;
c) A regra de capitação adotada.
III) Fundamentação da decisão de indeferimento de pedido de isenção.

I) A REVISÃO DA TABELA DE TAXAS MODERADORAS

Explícita ou implicitamente, boa parte das queixas recebidas manifestavam a rejeição do aumento, considerado excessivo, que se verificou nos valores das taxas moderadoras, em aplicação desde 1 de janeiro p.p.

De um modo geral, é colocada em causa a legitimidade constitucional daquele incremento, o qual, em alguns casos, terá ascendido a mais do dobro dos valores anteriormente praticados, exemplificando-se com as Consultas de Medicina Geral e Familiar nos Centros de Saúde (de €2,25 para €5,00), o Serviço de Urgência Polivalente (de €9,60 para €20,00) ou o Serviço de Urgência Médico-Cirúrgica (de €8,60 para €17,50).

Em abstrato e nos limites enunciados, não acompanho a conclusão de que os valores contidos na Portaria n.º 306-A/2011, de 20 de dezembro, briguem com o princípio da gratuidade tendencial, constitucionalmente firmado como característica essencial do SNS, este instrumento vinculado da concretização do direito à proteção da saúde.

Para concretização dos termos em que se encerra tal princípio, recorde-se o teor do Acórdão n.º 330/89, através do qual se traduz a apreciação pelo Tribunal Constitucional da solução legal que, em 1986, havia instituído a figura da taxa moderadora:
“(…) o conceito constitucional de «gratuitidade» do serviço nacional de saúde comporta, afinal, um certo halo de indeterminação, no qual cabe designadamente a possibilidade da exigência de taxas «moderadoras» do acesso a tal serviço (…).
Ponto é, todavia (e essa a razão de ser da reserva que acabou de insinuar-se), que, ao editar tais normas, o legislador governamental não tenha, afinal, «subvertido» o conteúdo mínimo da «gratuitidade» a que atrás se aludiu — conteúdo mínimo esse que será, para utilizar de novo uma expressão do relatório do Decreto-Lei n.° 57/86, o direito de cada um de «acesso ao Serviço Nacional de Saúde sem que tenha de pagar o preço da sua própria utilização» —, ou então (ou em paralelo) não tenha posto em causa os princípios da «universalidade» e «generalidade» que, segundo ainda o artigo 64.°, n.° 2, da Constituição, devem igualmente enformar o mesmo serviço (…). Ora, tal poderia acontecer, fosse em consequência da fixação das taxas em montantes demasiadamente elevados, e excessivos; fosse porque, ao estabelecer aquelas, o legislador foi de todo alheio ao particularismo de certas situações (v. g., de carência económica, ou de outra ordem) em que a exigência mesmo de uma simples taxa moderadora pode constituir impedimento do acesso ao SNS por parte de certos cidadãos ou grupos de cidadãos, ou pode revelar-se de todo incongruente.” (sublinhados meus).

Em consonância, sufraga o Tribunal que, pese embora seja legítima a cobrança de taxas moderadoras, é fundamental “garantir aos mesmos utentes que não terão eles de suportar individualizadamente os custos daquelas prestações, pelo que, isso sim, não lhes há-de poder ser exigida, por cada uma de tais prestações, uma contraprestação destinada directamente a transferir (ainda que só parcialmente) para eles o custo da prestação em causa — uma contraprestação, isto é, que tenha como objectivo o «pagamento» (o pagamento do «preço») do serviço prestado — ou, então, tal que (designadamente por força do seu montante) venha a ter praticamente um efeito equivalente (e subverta, desse modo, o que poderá qualificar–se como conteúdo essencial mínimo de qualquer ideia de «gratuitidade»). (idem) (sublinhado meu).

Já após a delimitação da gratuitidade, qualificada como tendencial, pela Revisão Constitucional de 1989, o Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de determinadas normas constantes da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de agosto), relembrou a intenção legislativa que esteve na génese da consagração constitucional da expressão «tendencialmente gratuito» (substitutiva do anterior léxico que se limitava a caracterizar o SNS com o adjetivo «gratuito»):
“(…) a expressão «tendencialmente gratuito» não pode ser entendida no sentido de inverter a regra geral da «gratuitidade» do Serviço Nacional de Saúde, mas apenas como comportando excepções, na medida em que seja necessário racionalizar a procura de cuidados de saúde, através da aplicação de taxas moderadoras. Por sua vez, a locução «tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos» significa que a graduação da gratuitidade tem de tomar em consideração a situação económica e social dos cidadãos, devendo a gratuitidade integral ser garantida aos grupos sociais mais carenciados (…)” (sublinhado meu)

Nada parece necessário explicitar adicionalmente, para o que adiante se defende. Assim, duas observações preliminares, face à reforma ora em curso, cumpre enunciar.

Aceitando sem reserva que se possa ter concretizado o anunciado aumento do número de pessoas abrangidas pelas regras de isenção das taxas moderadoras, designadamente por motivos económicos, ocorre não perder de vista
a) o maior significado económico de tal isenção, face aos valores ora estabelecidos como taxas moderadoras;
b) correspetivamente, a muito maior dificuldade, especialmente para os agregados com rendimento ligeiramente superior ao limiar de isenção, em suportar os valores em causa.
Desta forma, num contexto de grandes dificuldades económicas e de redução dos rendimentos, as quantias ora estabelecidas, embora sempre abaixo do limite abstrato acima enunciado, têm no mínimo elevado potencial de se constituírem como demasiado elevados numa miríade de situações, constituindo um impedimento ou restrição do acesso ao SNS por parte de determinados utentes que se encontrem, por vezes por pouco, se situem acima da condição de insuficiência económica.

Não é válida (nem interessante, do ponto de vista de apreciação da constitucionalidade) a comparação do montante global recolhido a título de taxas moderadoras e a despesa total do SNS, como igualmente deve ser temperada a relativa importância de regras quantitativas que comparem a taxa com o custo do ato médico praticado, com a bem mais relevante verificação, face ao contexto social conhecido, da acessibilidade do ato em causa pela generalidade dos utentes.

Sendo lícita a “moderação” do acesso a cuidados de saúde, mormente quando estes resultam de opção do utente e não de referenciação por pessoal de saúde, num sistema binário como o atualmente consagrado em sede de taxas moderadoras corre-se sempre o risco de as tornar “inibitórias”, mais a mais quando se trabalha com valores como aqueles em vigor.

Se, no caso de consultas, e perante um utente isolado com rendimento imediatamente acima do limiar de isenção, se está, por cada ato, a cobrar um valor próximo de 1% desse rendimento, esta percentagem, no limite máximo admitido para o atendimento em urgência, atinge já 8% desse rendimento. Recorda-se que, neste cenário, inferior em algumas centenas de euros ao rendimento médio da população portuguesa, se está pouco mais de cem euros acima do salário mínimo, desta forma tendo um significado bastante mais marcado o quantitativo que corresponde a tal percentagem.

Embora constituam mera manutenção do regime anteriormente em vigor, dois aspetos há que resultam, assim, agravados, especialmente na citada franja de rendimentos próximos dos que ainda conferem isenção.

Recordo novamente o Tribunal Constitucional, ao enunciar que
“… tais taxas visam tão-só — como expressamente se deixou acautelado nesse artigo 7.° — «racionalizar a utilização das prestações» facultadas pelo serviço em causa: o seu objectivo — como se lê no relatório do Decreto-Lei n.° 57/86 — é unicamente o de «moderar a procura de cuidados de saúde, evitando assim a sua utilização para além do razoável». Por outras palavras — ainda do mesmo relatório — tais taxas têm em vista «garantir uma maior racionalidade na utilização dos limitados recursos humanos, técnicos e financeiros postos à disposição do Serviço Nacional de Saúde», contribuindo «para reservar as prestações de cuidados de saúde aos utentes que delas careçam», e não, de modo algum, fazer pagar por esses utentes os preços daqueles cuidados, prestados pelo SNS.” (Acórdão n.º 330/89, sublinhado meu).

Em primeiro lugar, conviria atenuar minimamente a binaridade mantida no atual sistema, a qual propicia, para duas situações hipotéticas, uma correspondendo ao caso de isenção e a outra não, que aquela possa, cœteris paribus, ter um rendimento disponível superior a esta última, isto contrastando uma igualmente hipotética diferença de um euro na capitação respetiva, com os valores hoje em vigor para as taxas em apreço.

O estabelecimento de um sistema com alguma progressividade, em analogia com o que já é praticado em outras atividades prestacionais do Estado, permitiria certamente atenuar, se não eliminar, as situações mais perversas que a referida binaridade hoje (como antes, reitero) admite.

Noto que esse sistema, afinal correspondendo à criação de diversos escalões intermédios de isenção parcial ou de bonificação nos montantes devidos, poderia inicialmente ser estabelecido com apenas um ou dois níveis intermédios.

Numa outra vertente inovatória, assente na ideia basilar de moderação da utilização dos recursos de saúde, tomo como premissa da tributação em causa a prevenção de todo e qualquer desperdício como objetivo ideal, mas igualmente aí se querendo abarcar a ausência de penalização para o acesso justificado a tais recursos.

Faço, assim, presente a possibilidade de, nas urgências hospitalares, a cobrança, total ou parcial, das taxas moderadoras estar essencialmente ligada à avaliação médica da justificação clínica para esse recurso a um serviço de urgência.

Essa avaliação clínica resultaria com facilidade da tradução da gravidade da situação clínica de cada utente, de acordo com o Sistema de Triagem de Prioridades de Manchester, devidamente acreditado e aplicado com alguma generalidade.

II) O REGIME DE ISENÇÃO DO PAGAMENTO DE TAXAS MODERADORAS

Devo liminarmente registar com apreço o avanço que integra o novo regime regulador do acesso às prestações do SNS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 113/2011, de 29 de novembro, e complementado pelas Portarias n.ºs 306-A/2011, de 20 de dezembro, e 311-D/2011, de 27 de dezembro, designadamente no que concerne ao modo como se faz refletir a condição económica dos cidadãos na concessão da isenção de taxas moderadoras.

Refiro-me especificamente ao afastamento de presunções baseadas em qualificações isoladas, como o percebimento de certa pensão, para de um modo global e por referência a todo o agregado familiar, se pretender verificar a real situação de carência económica que justificará a isenção.

Recordo, a esse respeito, tal como foi assinalado oportunamente ao Governo, a situação incompreensível que afastava da isenção quem, apesar da idade avançada, não auferisse qualquer pensão, pelo contrário abrangendo sem mais quem recebesse uma pensão, posto que mínima, sem curar da possibilidade do recebimento de outros rendimentos.

A consagração de uma avaliação global, aqui se inserindo não só a totalidade da riqueza auferida e possuída, mas também privilegiando a apreciação no quadro do agregado familiar, representa certamente um avanço na maior justiça do sistema.

Vejamos, todavia, alguns aspetos em que creio poder ir-se bastante mais longe na conformação dos critérios de decisão utilizados à concretização do princípio da igualdade no acesso a cuidados de saúde.

A) Atualidade dos rendimentos relevantes

Grande parte das queixas que me foram inicialmente apresentadas prendiam-se com a circunstância de a situação de insuficiência económica dos utentes ser aferida por referência aos rendimentos do agregado familiar conhecidos no ano civil imediatamente anterior (cf. artigo 6.º do Decreto-Lei 113/2011 e artigo 2.º da Portaria 311-D/2011), tendo por base a informação constante, em 30 de setembro de cada ano, nas bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira e a reportada pelos serviços da segurança social referente ao ano civil anterior.

Tal critério estabelece inevitavelmente um período de inércia entre a verificação de circunstâncias modificativas do rendimento e a sua repercussão no estatuto de isenção. Assim, até agora, os requerimentos a este propósito submetidos a partir de 1 de janeiro p.p., foram avaliados por confronto com os dados constantes das declarações de IRS referentes ao ano de 2010.

Explicitando um caso limite, um evento modificativo do rendimento que tenha ocorrido em dezembro de 2010, com efeitos durante todo o ano de 2011 e até à atualidade, ainda hoje não é, por regra, tomado como relevante, presumindo a Administração, mais de 18 meses volvidos, a perceção do rendimento registado em todo o ano de 2010.

Esta situação dá azo a que se esteja a conceder ou a negar, com efeitos imediatos, determinados benefícios com base em situações económicas verificadas há cerca de dois anos e, portanto, potencialmente obsoletas. Assim se premeia os utentes que tiveram a felicidade de ver as suas situações socioeconómicas melhoradas, neste caso, a partir de 2011 e que, na presente data, já não reuniriam os pressupostos necessários para a verificação da condição de insuficiência económica; por outro lado, penitencia os utentes que, ao invés, se viram confrontados com um decréscimo de rendimentos a partir de 2011, mostrando-se irrelevante o facto de os mesmos se encontrarem ou não atualmente em uma situação de extrema precariedade.

Antecipando a superveniência de situações críticas, aquando da entrada em vigor do novo regime, foi dirigida uma comunicação a Sua Excelência o Secretário de Estado da Saúde, a respeito da necessidade de se acautelar uma redução súbita do rendimento do agregado familiar, como seria o caso infelizmente mais frequente do desemprego de um ou mais membros do mesmo.

Embora a resposta inicialmente recebida não fosse favorável, foi com agrado que, posteriormente, se teve conhecimento da aprovação do que hoje é o Decreto-Lei n.º 128/2012, de 21 de junho, acautelando em termos corretos a situação dos desempregados.

Reconhecendo e aplaudindo esta solução, constato, todavia, que permanecem por resolver aqueles outros casos, não menos numerosos, de efetivo decréscimo abrupto de rendimentos não decorrente de situações de desemprego. Noto, a título de mero exemplo, as situações de diminuição de remuneração, decorrente de novas regras legais recentemente introduzidas, de passagem a situações de reforma/aposentação ou até resultantes de vicissitudes como a de divórcio.

B) A determinação do rendimento

Julgo ainda pertinente chamar a boa atenção de Vossa Excelência para três aspetos mais críticos nas atuais regras de determinação do rendimento relevante para estabelecimento ou não de isenção do pagamento das taxas moderadoras.

Das prestações sociais

De acordo com o disposto no artigo 3.º da Portaria 311-D/2011, no apuramento do rendimento médio mensal são contabilizados os rendimentos brutos auferidos pelo agregado familiar, incluindo, entre outros, o valor global das prestações sociais pagas pelos serviços e entidades do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social.

Do Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, resulta que as prestações sociais, também previstas como rendimentos relevantes para efeitos da verificação da condição de recursos exigida para acesso a determinados apoios (onde outrora se incluía a isenção do pagamento de taxas moderadoras ), eram definidas como “todas as prestações, subsídios ou apoios sociais atribuídos de forma continuada, com excepção das prestações por encargos familiares, encargos no domínio da deficiência e encargos no domínio da dependência do subsistema de protecção familiar” (cf. artigo 11.º, sublinhado meu)

À míngua de uma definição equivalente no âmbito da Portaria 311-D/2011, e presumindo que tal omissão terá sido intencional, sou atreito a concluir que a exceção acima sublinhada perdeu existência no novo regime de acesso às prestações do SNS.

Tal conclusão é reforçada com a denúncia de vários utentes no sentido de que determinadas prestações sociais, que se encontrariam a receber para acorrer a encargos determinados, estariam a ser indiferenciadamente computadas no cálculo do rendimento determinante para a decisão de concessão ou manutenção da isenção de taxas moderadoras.

Entre estas prestações, ocorre especialmente destacar o “Complemento por Dependência”, atribuído pelo Instituto da Segurança Social, I.P., o qual ora se bosqueja para enucleação da presente problemática.

O “Complemento por Dependência” consubstancia uma prestação pecuniária, de concessão continuada mensal, concedido, em regra, aos pensionistas que, por se encontrarem em uma situação de dependência, não estão aptos a praticar com autonomia atos indispensáveis à satisfação das necessidades básicas da vida quotidiana (v.g., higiene pessoal, alimentação, locomoção), carecendo, por esse motivo, da assistência de outrem (cf. Decreto-Lei n.º 265/99, de 14 de julho, e Portaria n.º 764/99, de 27 de agosto).

A atribuição do predito subsídio depende do efetivo recurso por parte do beneficiário aos serviços assistenciais de outrem, correlativamente se suspendendo quando se verifique que não está a ser prestada àquele a assistência nos termos declarados.

Está, portanto, em causa um apoio que, apesar de materializar-se em uma prestação de valor pecuniário, destina-se exclusivamente a compensar o acréscimo de encargos familiares originado pela imprescindibilidade de “contratar” terceira pessoa/instituição para prestar concretos serviços de assistência.
Ao invés, facilmente se vislumbra que não está aqui em causa qualquer sucedâneo pecuniário destinado a substituir rendimentos, reais ou presumidos, perdidos ou a compensar eventual perda de capacidade de ganho, como sucede, designadamente, com as pensões por invalidez, velhice e/ou de sobrevivência. Trata-se antes de um complemento a estas, cuja aplicação final não está, em princípio, na discricionariedade do beneficiário.

Tomando como base o “Complemento por Dependência”, creio afigurar-se avesso ao próprio conceito de rendimento a consideração de prestações sociais que, pela sua natureza e finalidade ínsitas, não correspondem a qualquer acréscimo na esfera patrimonial do seu titular, porquanto encontram-se diretamente consignadas a despesas determináveis ou determinadas a priori.

Acudindo à doutrina e jurisprudência fiscais para delinear o conceito de rendimento (nessa instância tem vindo a consolidar-se uma noção baseada na teoria do “rendimento-acréscimo”), assertarei que aquele consiste na “(…) soma do consumo e do incremento líquido do património, ou seja o acréscimo de riqueza de um sujeito económico que pode ser gasto sem qualquer diminuição do património inicial” .

A existência de rendimento pressupõe, assim, um verdadeiro acrescento com valor patrimonial, o qual ou é utilizado no consumo ou contribui para a sobrevalorização do património.

Ora, quando se trate de prestações afetas a determinados encargos, é mister asseverar que a sua perceção não se traduz em qualquer aumento do poder aquisitivo ou em qualquer outro fluxo de riqueza para o seu titular, porquanto não se destina a ser utilizado livremente no mercado, nem adiciona qualquer ativo ao seu património.
Não obstante constituírem, na prática, uma “mais-valia pecuniária” que entra no orçamento familiar, tais prestações não exprimem todavia o seu rendimento real, já que visam compensar diretamente a perda de valor a que aquele património concreto está sujeito por virtude dos encargos havidos por força da verificação de determinadas situações incapacitantes legalmente previstas.

Pelo exposto, constituindo as prestações sociais destinadas a compensar encargos indicadores fictícios da disponibilidade económica dos seus titulares, julgo que a sua consideração como rendimento relevante para efeitos de apuramento da capacidade económica do respetivo beneficiário, para além de ser juridicamente incorreta, é faticamente desacertada. Do que se expendeu dúvidas não afluem de que tais parcelas de dinheiro não podem ser consideradas, em teoria, disponíveis para o eventual pagamento de taxas moderadoras, afigurando-se normativo e axiologicamente perverso o entendimento inverso.

Noutra perspetiva, assinale-se que a atual solução dá idêntico tratamento a certo rendimento, todo ele proveniente, por exemplo, de pensão de velhice, e ao mesmo quantitativo, mas desta vez repartido entre uma pensão de invalidez e o complemento por dependência. A causa, expressamente estabelecida, para esta última prestação determina assim um tratamento igualitário do que é desigual na sua base substantiva.

 

As deduções específicas

Ocorre igualmente notar uma desigualdade de tratamento no que toca, por um lado, aos rendimentos de trabalho dependente (categoria A de IRS), e, por outro, aos rendimentos empresariais e profissionais (categoria B).

Quanto aos primeiros, manda-se atender ao seu rendimento bruto, sem qualquer dedução; para os segundos, referencia-se a consideração dos “lucros”, assim se remetendo para os métodos de cálculo estabelecidos pelos art.ºs 28.º e seguintes do Código de IRS.

Não se critica esta última solução, sendo esta a medida do rendimento relevante para tributação nesta sede. Há que reconhecer, todavia, que a consideração, aqui, das despesas tidas pelo contribuinte para a angariação desse rendimento não têm qualquer contraparte no caso dos trabalhadores por conta de outrem.

Para cabal tratamento igual de ambas as categorias de rendimento, no mínimo replicando o que sucede a nível fiscal, há que consagrar como rendimento relevante, no caso da categoria A, aquele que resulte da aplicação da dedução específica prevista no art.º 25.º, n.º 1, a), com a ressalva do n.º 2, daquele Código.

Dos rendimentos prediais

Por fim, há que reconhecer a justeza de alguma perplexidade face à cumulação, com os rendimentos prediais efetivamente auferidos, de um acréscimo de 5% do valor tributário dos imóveis (com natural e louvável exclusão da casa de habitação), como que se de uma penalização se tratasse para quem é proprietário.

Verificando, por exemplo, que idêntica regra não existe no caso dos capitais, parece aqui existir uma penalização exclusivamente dirigida a quem possui património imobiliário, esquecendo ou tratando mais benevolamente quem, por hipótese, possua um património mobiliário eventualmente mais avultado.

Creio não ser estulto adivinhar, na regra em questão, um ou dois sentidos possíveis: em primeiro lugar, obviar à possibilidade de eventual evasão fiscal ser ainda premiada, em sede de isenção; em segundo lugar, iniciar aqui uma referência a um duplo padrão de insuficiência económica, atendendo não só ao rendimento como igualmente ao património detido.

Ambas as orientações são válidas e diria mesmo imperiosas, para manutenção da justiça social. Julgo, todavia, não ser a melhor (nem possível) a forma como estão atualmente implementadas.

Desta forma, compreenderia que, no caso dos rendimentos de bens imóveis, fosse presumido o recebimento de certa percentagem do seu valor patrimonial, como seja a de 5% hoje fixada. Deste modo, uma regra congruente para a real aferição dos rendimentos de determinado agregado familiar atenderia ao maior de dois valores, ou o efetivamente declarado para efeitos fiscais ou o resultante da aplicação daquele coeficiente presumido. Não parece possível é a sua cumulação, desta forma agravando, em termos de rendimento, a aferição segundo a respetiva fonte, em termos aliás díspares e não compatíveis com a realidade social, em que a riqueza assenta cada vez mais nos valores mobiliários.

Acresce a especial relevância que regras como esta podem ter num sistema binário, como o atual, em que um pequeno acréscimo pode significar a perda total do benefício.

Noutro sentido, deverá o decisor claramente separar a apreciação da situação económica do interessado nas duas vertentes assinaladas, de património e de rendimento. É lícito considerar-se que quem possua património significativo (mas, diria, sem restrição aos imóveis) não deve beneficiar de isenção; não é já adequado confundir-se os parâmetros e, por via de património que até pode ser insignificante, criar-se não uma presunção mas um verdadeiro agravamento de quem tem um imóvel, posto que de ínfimo valor, para daí, em perfeita paridade com o rendimento realmente auferido, significar a desproteção de quem, afinal, está em situação de tanta carência ou maior do que os demais utentes.

C) Regras de Capitação

Em outro prisma, foram-me apresentadas uma série de queixas relatando situações de agregados familiares que, não obstante padecerem de graves dificuldades económicas, não preencheriam os requisitos aritméticos mínimos impostos pela Portaria 311-D/2011, exigíveis para efeitos de isenção do pagamento de taxas moderadoras.

A impossibilidade, in casu, de beneficiar da mencionada isenção dever-se-ia à fórmula matemática legalmente estabelecida para a aferição das respetivas situações de insuficiência económica, cuja aplicação casuística aparenta tornar permeável a ocorrência de situações de injustiça e desigualdade sociais.

De acordo com o disposto no artigo 6.º do Decreto-Lei 113/2011, e no artigo 2.º da Portaria 311-D/2011, encontram-se isentos do pagamento de taxas moderadoras os utentes que integrem agregado familiar cujo rendimento médio mensal seja igual ou inferior a 1,5 vezes o valor do IAS, i.e., atualmente € 628,83. Por seu turno, resulta da interpretação conjugada do n.º 2 do artigo 2.º e do artigo 4.º, ambos da Portaria 311-D/2011, que o rendimento médio mensal relevante para o citado efeito afere-se mediante a divisão do rendimento anual do agregado familiar por 12 meses e subsequente divisão pelo número de sujeitos passivos a quem incumbe e direção do agregado familiar.

Ora, é precisamente este último conceito, definidor das regras de capitação inovatoriamente introduzidas pela Portaria 311-D/2011, que suscita alguma perplexidade.

É de notar que esta solução, no campo em causa, substitui a regra contida no Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de junho, nos termos da qual a capitação de rendimentos para verificação das condições de acesso a prestações sociais não contributivas, bem como a outros apoios sociais (incluindo a isenção de taxas moderadoras) correspondia à divisão do rendimento do agregado familiar pelo número de todos os elementos desse agregado, de acordo com uma escala de ponderação diferenciada.

Acresce que a alteração das referidas regras de capitação originou o aparecimento de situações que, quando sujeitas a exercícios de comparação, indiciam uma afronta preocupante aos Princípios da Justiça e da Igualdade.

Enquanto exemplo sintomático das implicações práticas da nova formulação normativa, descrevo uma das situações denunciadas perante este órgão do Estado. Trata-se de um agregado familiar constituído por 5 membros (3 filhos menores), auferindo um rendimento médio mensal de cerca de € 1300. Aplicadas ao caso concreto as regras de capitação previstas na Portaria 311-D/2011, facilmente se depreende que o casal em causa não se encontra na situação de insuficiência económica necessária para efeitos de isenção de taxas moderadoras, na medida em que, havendo que desconsiderar os menores a seu cargo, a simples divisão do seu rendimento médio mensal por 2 redunda em um valor de cerca de € 650, ou seja, superior ao limite mínimo estabelecido.

Imperativos de justiça e igualdade ressaltam beliscados quando se compara a situação acima identificada com as de outros utentes que, pelo simples facto de não terem filhos ou outros dependentes a seu cargo, saem claramente beneficiados com a aplicação deste novo regime. A título ilustrativo, referencie-se a situação de dois outros utentes, casados e sem filhos, com um rendimento médio mensal, pouco inferior, de € 1200. A aplicação simples do aludido cálculo matemático permite obter uma capitação de € 600, consequentemente beneficiando da isenção do pagamento de taxas moderadoras.

Não se diga, sequer, que a hipotética isenção de que poderiam gozar os filhos no primeiro exemplo, se menores de 12 anos, restauraria a igualdade. É que a aferição das condições económicas não se pode obviamente restringir à situação de isenção ou não, antes curando de todo o conjunto de despesas inerentes à vida com um mínimo de dignidade.

Sendo certo que economias de escala e a própria realidade social não permitem considerar como válida ou imposta uma capitação estrita e igualitária, a pura e simples desconsideração total e absoluta da dimensão do agregado familiar propicia, não só a violação do princípio basilar da igualdade como trabalha em contraciclo quanto a outros valores constitucionalmente recebidos, como o da proteção da família e a consideração especial das crianças e jovens.

Outros casos gritantes poderiam aqui ser exemplificados, como as que afetam famílias monoparentais em que a capitação unitária, independentemente do número de filhos, torna impossível a isenção para valores pouco acima dos € 600. Um casal com filhos com um rendimento de €1200 está isento, quando uma mãe ou pai sozinhos, com um rendimento de €650 e o mesmo número de filhos, já não beneficia de tal isenção.

A atual solução normativa propicia, assim, para além da frustração do objetivo da introdução de critérios de racionalidade e de discriminação positiva dos mais carenciados e desfavorecidos, a existência de situações de injustificável injustiça e desigualdade sociais, porquanto beneficia os agregados familiares compostos apenas pelas pessoas a quem incumbe a sua direção, correlativamente prejudicando os agregados mais numerosos, os quais, para um mesmo rendimento, serão certamente mais necessitados de apoios sociais.

Na verdade, a ideia fundamental de justiça social ou distributiva está intrinsecamente envolvida no valor da igualdade material, o qual, no seu sentido positivo, pressupõe, inter alia, o tratamento em moldes de proporcionalidade de situações relativamente iguais ou desiguais. Em particular, estando em causa o direito fundamental à proteção da saúde, o qual deve ser assegurado de modo integralmente gratuito a todos os cidadãos que se insiram nos grupos sociais comprovadamente mais carenciados, torna-se imperioso a procura de uma solução equitativa que funcione como critério de aplicação corretiva, ou, in extremis, critério de substituição da Lei «injusta» vigente.

 

III) FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE INDEFERIMENTO DE PEDIDO DE ISENÇÃO.

Por fim, resta-me abordar uma questão que, apesar da sua natureza aparentemente formal, tem inegavelmente consequências substantivas muito relevantes.

Refiro-me ao modo como é notificada, em especial, aos utentes que requereram a isenção de taxas moderadoras por motivos económicos, a decisão de indeferimento. Trata-se de questão que, a título principal ou acessório, perpassou com frequência nas queixas recebidas pelo Provedor de Justiça.

Desta forma, é de assinalar que o texto do formulário em uso, embora ocupando seis parágrafos, apenas fornece, como fundamento para o indeferimento da pretensão, “o apuramento do rendimento médio mensal realizado pela Administração Tributária e Aduaneira”.

A fazer fé nas descrições que me são feitas, as unidades de saúde pouco ou nada adiantam a esta fórmula literal, argumentando (decerto com razão) não disporem de mais elementos. Por outro lado, referem as queixas recebidas que o recurso aos serviços de atendimento da AT não melhora o conhecimento da realidade que foi considerada para este efeito, remetendo esta entidade para os serviços do Ministério da Saúde.

Ora, independentemente do maior ou menor conhecimento por cada utente das particularidades do regime em vigor, no que toca à consideração do rendimento relevante, é compreensível a perplexidade evidenciada por quem receba comunicação similar.

Têm os utentes, especialmente enquanto interessados em procedimento que conclui por uma decisão desfavorável, direito a conhecer o iter completo seguido pela Administração para alcançar aquela conclusão. A fórmula utilizada é meramente assertiva e não permite o conhecimento pelo destinatário, com o mínimo de rigor, dos fundamentos da decisão, desta forma não possibilitando uma reação que igualmente seja certeira e sustentada.

O esclarecimento das queixas recebidas resulta quase numa adivinhação, sugerindo pistas possíveis para se superar o valor fixado como limite, aparentemente superior ao que resultaria da mera capitação do rendimento constante de declaração de IRS.

Julgando interessante dar um exemplo concreto, atente Vossa Excelência na situação de determinada pessoa que tinha como único rendimento relevante o valor recebido a título de pensão mensal pelos serviços da segurança social, o qual, computado em termos concretos, ficava, em todos os casos, manifestamente aquém do limite da condição de insuficiência económica.

Apenas depois de uma averiguação mais profunda, foi possível verificar que em 2010, por razões que não relevam, tinha o Centro Nacional de Pensões procedido ao pagamento de retroativos referentes a anos anteriores. Essa concentração, no mesmo ano, do pagamento de quantias respeitantes a vários anos, tinha sido, afinal, a causa para o indeferimento.

Independentemente de se ter assim sanado o problema, evidencia-se todavia a justa perplexidade que do utente em questão, perante uma conclusão que lhe foi apresentada sem o mínimo de factos que a consubstanciassem e permitissem compreender a sua razão.

IV) CONCLUSÕES

Fundamentando-me nas considerações precedentes, RECOMENDO a Vossa Excelência, ao abrigo do disposto nos artigos 8.º e 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril (Estatuto do Provedor de Justiça), que seja:
a) estudada a criação de um escalonamento do montante solicitado a título de taxa moderadora em função da situação económica dos utentes, estabelecendo nível ou níveis intermédios de isenção parcial;
b) eliminada a cobrança de taxas moderadoras, nos serviços de urgência, para as situações medicamente reconhecidas como aconselhando o recurso, direto ou referenciado, a essas estruturas especializadas de cuidados de saúde;
c) estabelecido legislativamente um mecanismo de salvaguarda, o qual permita, com base em critérios e meios de prova adequados, a verificação da ocorrência de situações de carência económica que exijam de modo célere a modificação do estatuto do ou dos utentes em causa, deste modo se assegurando que o seu acesso ao SNS não é colocado em crise, por um período atualmente sempre significativo;
d) corrigida a forma de determinação dos rendimentos relevantes, conforme disposto no artigo 3.º da Portaria 311-D/2011, à luz das considerações acima expostas, com exclusão de prestações sociais que sejam expressamente destinadas a certos encargos, como é o caso do complemento de dependência;
e) considerada, nos rendimentos de trabalho dependente, a dedução específica estabelecida no Código de IRS;
f) modificada a solução constante do art.º 3.º, n.º 2, d), da Portaria n.º 311-D/2011, nos termos acima descritos, atendendo-se, em sede de rendimentos prediais, ao maior dos valores entre o que é anualmente declarado e o que resulta do coeficiente hoje fixado, sem prejuízo de se estabelecer cláusula de exclusão de quem possua património, móvel ou imóvel, superior a certo limite.
g) alterada a regra de capitação prescrita na Portaria 311-D/2011, no sentido de passar a prever que outros membros integrantes do agregado familiar, para além dos sujeitos passivos a quem incumbe a sua direção, sejam tomados em consideração no cálculo da situação de insuficiência económica, ainda que com ponderações valorativas diferenciadas em função da idade, do grau de parentesco ou de outros fatores adequados;
h) garantido, melhorado e reforçado o cumprimento, na decisão de indeferimento, das regras gerais sobre fundamentação de atos administrativos, com indicação neste caso dos cálculos observados pela Administração Tributária e Aduaneira.

Permito-me finalmente assinalar, com especial acuidade no atual momento orçamental, que nenhuma das propostas que formulo tem, por si só, implicações negativas em termos de aumento da despesa ou da diminuição da receita. Qualquer uma destas recomendações, conduzindo na minha ótica a um claro melhoramento na distribuição de direitos e de encargos pelo universo de utentes do SNS, é compatível com a fixação de uma despesa pública equivalente à que é atualmente pressuposta no quadro normativo em vigor.

Certo da boa atenção de Vossa Excelência e aguardando a resposta legalmente prevista, apresento os meus melhores cumprimentos,

 

 

O Provedor de Justiça,

Alfredo José de Sousa