Ex.mo Senhor
Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira
Rua da Prata, n.º 10 – 2.º
1149-027 LISBOA
 
 
 
 
 
 
Nossa Ref.ª
Proc.º: R – 1266/10 (A2)
 
Assunto:  Queixas dirigidas ao Provedor de Justiça. IRS – União de facto – opção pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
 
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 1/A/2013
(artigos 8.º, n.º 1 e  20º, nº1, alínea a), da Lei nº9/91, de 9 de abril[1])
 
 
I – Enunciado
 
Desde meados de 2008 que têm vindo a ser dirigidas ao Provedor de Justiça queixas de sujeitos passivos de IRS que, embora reunindo os requisitos previstos no artigo 1.º, da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio (Lei da União de Facto), se veem impedidos do exercício da opção pelo regime de tributação dos rendimentos dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, direito que lhes é conferido pela alínea d) do seu artigo 3.º (alínea d) do n.º 1 do mesmo artigo, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto).
 
Vêm muitas das referidas queixas instruídas com documentos comprovativos da situação invocada, nomeadamente com cópias das certidões de nascimento de filhos comuns a ambos os unidos de facto, nascidos até mesmo em data anterior à da entrada em vigor da Lei n.º 135/99, de 28 de agosto, que precedeu a atual regulamentação da matéria em análise, tendo desde aí vivido em união de facto, embora sem terem domicílio fiscal comum; outras queixas são apresentadas por sujeitos passivos que, tendo tido durante vários anos o mesmo domicílio fiscal, adquiriram nova casa de morada de família, para cuja localização apenas um dos unidos de facto transferiu o seu domicílio fiscal.
 
Muitos dos queixosos, vivendo há longos anos em união de facto, não tiveram, desde o aditamento do artigo 14.º – A, do Código do IRS, pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, até à divulgação das instruções da Direção de Serviços do IRS, de 14 de julho de 2008 e posteriormente sancionadas por Despacho de V. Ex.ª, de 29 de setembro do mesmo ano, qualquer dificuldade em provar a situação de convivência comum, pelo período estabelecido na lei reguladora das uniões de facto, que lhes permitisse exercer o direito pela opção da tributação dos seus rendimentos segundo o regime dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
 
Determinam as referidas instruções administrativas que, “Pela conjugação do artigo 14.º do CIRS e da Lei n.º 7/2001, de 11/5, relativamente às uniões de facto, a aplicação do regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens aos unidos de facto, depende da verificação cumulativa de condições objectivas e concretamente estipuladas na lei:
Da identidade de domicílio fiscal há mais de dois anos e durante o período de tributação; e
Da assinatura, por ambos, na respectiva declaração de rendimentos”.
 
Terão pretendido aquelas instruções “esclarecer a interpretação e aplicação do n.º 2 do art. 14.º do CIRS[2]30-G/2000, de 29/12, resulta claro que a ratio legis (…) foi [a] de evitar situações de abuso diagnosticadas no exercício daquela opção por contribuintes que não preenchiam os requisitos da união de facto nos termos da lei respectiva”, uma vez que a tributação conjunta dos rendimentos dos membros da união de facto se traduz num «desagravamento fiscal», como se conclui no Parecer n.º 3/2011 – Proc.º 532/10, de 28/01/2011, da Direcção de Serviços de Consultadoria Jurídica e Contencioso.”.”, considerando que “Atentos os objectivos de combate à fraude e evasão fiscais da Lei n.º
 
II Apreciação
 
A.    O regime jurídico da união de facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio)
 
Embora a regulamentação dos efeitos jurídicos da união de facto seja anterior à publicação da Lei n.º 135/99, de 28 de agosto[3]pessoas de sexo diferente que vivem em união de facto há mais de dois anos”, de entre os quais o previsto na alínea d) do seu artigo 3.º, ou seja, o direito à “aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens”., revogada pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, foi aquele o primeiro diploma que procedeu à sistematização dos direitos atribuídos às “
 
Já a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, viria, na redação inicial do seu artigo 1.º, a atribuir efeitos jurídicos à situação de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivessem em união de facto há mais de dois anos, mantendo o direito dos unidos de facto à aplicação do regime do imposto de rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, desde que se não registassem nenhuma das excepções previstas no seu artigo 2.º (na redação originária)[4], parcialmente coincidentes com os impedimentos matrimoniais estabelecidos pelos artigos 1601.º e 1602.º, do Código Civil.
 
Muito embora o artigo 9.º da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio previsse a regulamentação governamental das suas normas que de tal carecessem, no prazo de 90 dias a contar da data da sua entrada em vigor, no que respeita à tributação do rendimento pessoal dos membros da união de facto, tal não foi necessário, dado que a Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro, já havia aditado o artigo 14.º – A do Código do IRS[5] (atual artigo 14.º), ainda no âmbito de vigência da Lei n.º 135/99, de 28 de agosto.
 
Contudo, nunca, até à data da emissão das mencionadas instruções da Direção de Serviços do IRS, de 14 de julho 2008, foi exigida a verificação dos requisitos ali previstos, em especial o do domicílio fiscal comum, supostamente, por diversas ordens de razões:
 
a)      Em primeiro lugar, devido à proteção constitucional da família, independentemente da forma da sua constituição[6];
b)      Em segundo, atendendo ao princípio da capacidade contributiva e à determinação constitucional de que a tributação do rendimento das pessoas singulares é “único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar” (n.º 1 do artigo 104.º, da Constituição da República Portuguesa), independentemente da forma da constituição do agregado familiar, por casamento ou por união de facto;
c)      Em obediência ao princípio da igualdade (artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa) a que estão obrigadas todas as funções estaduais, em face de que a vinculação da administração àquele princípio implica, nomeadamente “[a] proibição de medidas administrativas portadoras de incidências coativas desiguais (encargos ou sacrifícios) na esfera jurídica dos cidadãos (igualdade na repartição de encargos e deveres”[7];
d)     Por outro lado, porque a constituição e a produção de efeitos jurídicos da união de facto não carece de prova documental ad substantiam, cuja falta implicaria a sua nulidade, como o prova o facto de, contrariamente ao que acontece em outros ordenamentos jurídicos[8], os efeitos jurídicos dela derivados não dependerem de contrato escrito ou de inscrição em qualquer registo (civil ou de outra natureza);
e)      Porque, não dependendo a produção de efeitos jurídicos da união de facto de qualquer formalidade, a sua prova poderia ser feita por qualquer meio admissível em direito, nomeadamente através de prova testemunhal.
 
B.     União de facto e domicílio fiscal comum.
 
A criação do número fiscal de contribuinte pelo Decreto-Lei n.º 463/79, de 30 de novembro, serviu, de acordo com o seu preâmbulo, objetivos de combate à evasão fiscal, sendo obrigatória a inscrição do domicílio fiscal das pessoas singulares, tal como definido no n.º 2 do artigo 3.º daquele diploma, em que se dispõe que este “funcionará como a sua sede para efeitos jurídico-fiscais, nomeadamente para qualquer tipo de contacto necessário com a administração fiscal.” (sublinhado nosso).
 
Não obstante as sanções já previstas nos artigos 13.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 463/79, de 30 de novembro, na sua redação originária, veio o artigo 70.º do Código de Processo Tributário (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 154/91, de 23 de abril, estabelecer no seu n.º 1, a “obrigatoriedade de participação de domicílio” ou de qualquer alteração do mesmo, no prazo de 10 dias, cominando o n.º 2 do citado artigo a inoponibilidade à administração fiscal da “falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação (…) devido ao incumprimento do disposto no n.º 1”.
 
Em nota ao artigo 70.º, do CPT que comentei e anotei em coautoria com José da Silva Paixão[9], refere-se que “O n.º 2 do artigo em anotação significa que, excepto nos casos em que é legalmente exigida a citação ou notificação pessoal, o interessado não pode arguir a falta da sua citação ou notificação, se estas forem dirigidas para o domicílio ou sede constante dos processos e não para o ulteriormente adoptado.”.
 
Posteriormente viria o artigo 19.º, da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, estabelecer regras relativas ao domicílio fiscal, equiparando-o, quanto às pessoas singulares, à residência habitual, expressão empregue com o sentido de morada, e do qual decorrem efeitos jurídico-tributários meramente formais.
 
Neste sentido, Maria Margarida Cordeiro de Mesquita[10], citando doutrina nacional e estrangeira, entende que “O protagonismo reconhecido à residência tem levado, nalguma medida, a desviar a atenção da doutrina do conceito de domicílio fiscal: elemento de identificação dos sujeitos passivos e demais interessados, ele respeita à sua localização para efeitos do exercício dos seus direitos e deveres, no que se refere ao procedimento tributário e ao processo judicial tributário (âmbito formal da relação jurídico-tributária).”.
 
Em comentários ao artigo 43.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/89, de 26 de outubro e que sucedeu ao CPT, escreve Jorge Lopes de Sousa[11] que nesta norma se estabelecem os termos em que se concretiza a obrigação de comunicação do domicílio fiscal, impondo-se que os interessados em processos fiscais comuniquem, no prazo de 15 dias, qualquer alteração do seu domicílio ou sede.
 
E acrescenta o Autor citado, ainda que com reservas em termos de constitucionalidade da norma, caso se entenda que esta contém uma presunção inilidível de notificação, que, em sintonia com o n.º 3 do artigo 19.º, da LGT, o n.º 2 do artigo 43.º, do CPPT, prevê que a consequência da falta de tal comunicação (da alteração do domicílio fiscal) é “a da falta de recebimento de qualquer aviso ou comunicação expedido nos termos legais, devido ao não cumprimento daquela obrigação não ser oponível à administração tributária (…)”.
 
Assente doutrinária e jurisprudencialmente que a comunicação de qualquer alteração do domicílio fiscal se reporta exclusivamente ao âmbito formal da relação jurídico-tributária, impor-se-á a conclusão de que não poderá a falta daquela comunicação ter efeitos materiais sobre a situação dos sujeitos passivos, como sejam os de impedir a aplicação de um determinado regime legal de tributação.
 
Por outro lado, se é certo que, na sua versão original, a Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, não contivesse qualquer disposição relativa à prova da união de facto, ela viria a ser introduzida pelo aditamento do artigo 2.º- A, pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto[12]. De forma genérica, dispõe o n.º 1 daquele artigo que a união de facto se prova por qualquer meio legalmente admissível, excepto se existir disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica.
 
Poderia argumentar-se, no que respeita à prova da união de facto para efeitos de aplicação do regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, que, face à redação do artigo 14.º, do Código do IRS, é exigível que ambos os membros estejam inscritos no registo de contribuintes com um domicílio fiscal comum.
 
Restará, porém, saber-se em que medida a falta de domicílio fiscal comum e não, note-se, a de residência comum, constitui presunção da não existência de união de facto, quando exercida pelos seus membros a opção de tributação pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
 
C.    O Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) como imposto pessoal. O princípio da capacidade contributiva.
 
De entre as diversas classificações atribuídas aos impostos, assinala o Prof. Soares Martinez[13] como sendo a mais antiga, posto que já vem dos jurisconsultos romanos, a que os distingue entre impostos reais e pessoais, ou objetivos e subjetivos, segundo a terminologia de alguns autores.
 
Os impostos reais ou objetivos visam a tributação da riqueza, de forma objetiva, sem que na tributação se reflitam as condições pessoais do sujeito passivo; ao invés, os impostos pessoais ou subjetivos visam, predominantemente, tributar certos bens da titularidade de determinadas pessoas, cuja capacidade contributiva e outras circunstâncias pessoais são tidas em conta na determinação da prestação tributária.
 
A capacidade contributiva é um conceito jurídico-económico que se traduz na idoneidade económica para suportar o ónus do tributo e que deve ser levado em conta na fixação do valor do imposto a pagar por cada pessoa, singular ou coletiva[14], constituindo um verdadeiro limite material ao poder de tributar, enquanto corolário dos princípio da generalidade e da igualdade material, com especial densidade no que respeita aos impostos sobre o rendimento[15].
 
Com efeito, no que respeita à tributação do rendimento das pessoas singulares, determina o n.º 1 do artigo 104.º, da Constituição da República Portuguesa, que o imposto será único e progressivo, tendo em conta quer as necessidades, quer os rendimentos do agregado familiar; nessa medida, a maioria dos Autores classifica o IRS como imposto pessoal, em que o princípio da capacidade contributiva se não revela apenas na progressividade das taxas ou nas deduções à coleta[16], mas também na “isenção” de certos rendimentos, como, por exemplo, a exclusão da tributação dos ganhos de mais-valias reinvestidos na aquisição de habitação própria e permanente (artigo 10.º, n.º 5), a não tributação do mínimo de subsistência (artigo 70.º) ou a ilegitimidade constitucional das presunções absolutas de tributação[17].
 
De acordo com Casalta Nabais[18], a consideração fiscal da família, em sede de tributação do rendimento, é imposta não só pelo n.º 1 do artigo 104.º, da Constituição da República Portuguesa, mas também pelo seu artigo 67.º, n.º 2, alínea f), que consagra o dever estadual de “Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares”, implicando a proibição de discriminações desfavoráveis aos contribuintes casados ou com filhos, face aos contribuintes solteiros ou sem filhos e não a imposição ao legislador da utilização de benefícios fiscais para o favorecimento da constituição e desenvolvimento da família.
 
A formulação da proteção constitucional da família, em termos de tributação do rendimento, poderia legitimar a opção pela sua “personalização”, solução que não foi acolhida pelo legislador, apesar das referências a “agregado familiar” e à responsabilidade conjunta das pessoas a quem incumbe a sua direção[19].
 
O sistema de tributação conjunta dos rendimentos[20] de todos os membros do agregado familiar poderia levar a uma maior pressão fiscal e, consequentemente, a uma discriminação negativa da família, se o legislador não tivesse introduzido alguns mecanismos no sistema de tributação, como, por exemplo, a consagração do “quociente conjugal” (artigo 69.º, do Código do IRS), especialmente favorável àqueles agregados familiares em que apenas um dos membros a quem incumbe a sua direção obtém a totalidade ou a maior parte do rendimento.
 
O conceito de família inicialmente aceite pelo Código do IRS (artigo 14.º – Sujeito passivo – atual artigo 13.º) é o da família nuclear, constituída pelos progenitores e dependentes a cargo, mas foi, também, predominantemente, o da família fundada no casamento, como decorre da referência a “cônjuges” e a “filhos” ou “enteados”, conceito que se foi alargando, no que respeita aos dependentes, pela inclusão de adoptados e menores sob tutela e, ainda o da família monoparental, pela referência a “o pai ou a mãe solteiros”, apesar de, neste caso, não ter sido consagrado o “quociente familiar” como existe, por exemplo, em França (entre nós, o artigo 79.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, estabeleceu uma majoração à dedução específica a atribuir ao sujeito passivo, nas famílias monoparentais, majoração que foi mantida pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, embora com referência ao valor do IAS).
 
Contudo, o conceito de família acolhido pela versão inicial do Código do IRS, deixava de fora outras “modalidades” de família, como a constituída através da união de facto, abrangida quer pelo artigo 36.º, n.º 1, quer pelo artigo 67.º, da Constituição da República, realidade social reveladora de capacidade contributiva em condições semelhantes às do agregado familiar a que se referia o seu artigo 14.º [21](atual artigo 13.º), o que viria a ser suprido pelo aditamento do artigo 14.º – A (atual artigo 14.º), pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro.
 
D. As normas de incidência pessoal no Código do IRS. Presunções contidas em normas de incidência.
 
Reconhece a doutrina várias categorias de normas tributárias, entre as quais as de incidência, real ou objectiva e pessoal ou subjetiva, referidas aos pressupostos do nascimento da obrigação de imposto, as primeiras aos “tipos” das realidades de facto (factos, atos, coisas, bens, valores ou situações) que integram o âmbito da sujeição e as segundas aos sujeitos em cuja esfera jurídica se projetam os efeitos jurídico-económicos daquelas manifestações de riqueza ou capacidade contributiva[22].
 
Trata-se de normas que regulam as relações entre o Estado e os contribuintes, através das quais se exerce a soberania tributária e que, por respeitarem ao “se” ou “an” do imposto (o facto, atividade ou situação que dá origem ao imposto – o facto gerador ou facto tributário e aos sujeitos passivos da obrigação de imposto) se encontram subordinadas ao princípio da legalidade fiscal[23] que, por seu turno, se desdobra nos subprincípios da reserva de lei formal e material, por implicar a intervenção parlamentar, seja a intervenção material na fixação da disciplina própria do imposto, seja a intervenção meramente formal de concessão de autorização legislativa ao Governo (artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) e n.ºs 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa).
 
As normas de incidência real do IRS são as que constam dos artigos 1.º a 12.º do Código do IRS, reportadas a factos abstratos que podem ocorrer, em concreto, na esfera jurídica dos sujeitos passivos, tal como identificados nas normas de incidência pessoal contidas nos artigos 13.º a 21.º do mesmo Código e que, por definição, são as pessoas singulares residentes em território nacional ou as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos.
 
O princípio da capacidade contributiva revela-se impeditivo da consagração de presunções absolutas de tributação[24], como foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 348/97 – processo n.º 63/96, que julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 14.º, do Código do Imposto de Capitais – norma de incidência real, em que se consagrava a presunção juris et de jure da onerosidade dos contratos de mútuo, com fundamento na violação do princípio da igualdade[25][26].
 
Aquela decisão do Tribunal Constitucional viria a servir de fonte ao artigo 73.º – Presunções, da LGT, norma inserida no Capítulo III – Do Procedimento – Secção II – Instrução, em que se dispõe que “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”[27].
 
Mais recentemente e a propósito da tributação conjunta dos rendimentos dos unidos de facto, se pronunciou o 2.º Juízo da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, no Acórdão proferido no processo n.º 04550/11, em 07/04/2011, em que foi negado provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública da sentença do TAF de Ponta Delgada que havia julgado procedente a impugnação judicial da liquidação de IRS do ano de 2008, efetuada oficiosamente em 2010, numa situação em que os sujeitos passivos, membros de uma união de facto, não tinham domicílio fiscal comum, mas lograram provar a vivência em comum pelo período legalmente estabelecido.
 
O artigo 14.º do Código do IRS, enquanto norma de incidência pessoal, contém no seu n.º 2 a presunção de que, não tendo os sujeitos passivos o domicílio fiscal comum pelo período ali mencionado, não podem ser considerados como unidos de facto, para efeitos de aplicação de um regime de tributação que lhes pode ser mais vantajoso e pelo qual podem optar, na declaração de rendimentos. Tratando-se de uma presunção contida em norma de incidência, poderá (deverá poder) a mesma ser ilidida.
 
A administração fiscal dispõe de instrumento adequado à produção da prova da união de facto, porquanto o artigo 64.º do CPPT, sob a epígrafe de “Presunções”, estabelece o meio próprio a usar pelos contribuintes que, a fim de ilidir a presunção que tenha sido aplicada à sua situação concreta, não tenham lançado mão de outros meios de defesa – a reclamação graciosa ou a impugnação judicial e cuja decisão, se desfavorável ao contribuinte, pode ser sindicada mediante recurso para os tribunais administrativos e fiscais.
 
Assim como dispõe de instrumento adequado à punição da infração fiscal consistente na falta de apresentação ou apresentação fora do prazo legal das declarações ou fichas do NIF das pessoas singulares e nas inexatidões ou omissões nelas praticadas pelos unidos de facto (cfr. os n.º 4 do artigo 117.º e n.º 4 do artigo 119.º, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), respetivamente) que, não tendo procedido à alteração do domicílio fiscal, de modo a que o mesmo seja comum pelo período exigido pelo n.º 2 do artigo 14.º, do Código do IRS.
 
Ao invés, queixam-se os unidos de facto de que, apresentando declaração de rendimentos conjunta e assinada por ambos, se veem confrontados com liquidações adicionais de IRS pelos rendimentos auferidos por cada um, individualmente (mais grave será quando apenas um dos membros da união de facto não aufira qualquer tipo de rendimentos, situação em que, apesar da existência de agregado familiar, nem será considerado o quociente conjugal a que se refere o artigo 69.º, do Código do IRS), sendo a cada um aplicada coima por atraso na entrega das declarações de substituição a que são obrigados pela administração fiscal.
 
Senhor Diretor-Geral, a concretização do princípio da legalidade pela administração tributária determina uma interpretação principialista das normas, ou seja, uma interpretação das normas, em especial das normas de incidência, segundo os princípios básicos da Constituição Fiscal, o que implica, quanto à situação de que se vem a tratar, a harmonização das disposições legais contidas nos artigos 14.º, n.º 2, do Código do IRS, 19.º, da LGT, 43.º, do CPPT e 117.º, n.º 4, do RGIT, o que terá necessariamente que passar pela aceitação de prova da coabitação dos unidos de facto durante mais de dois anos, por outros meios, que não apenas pela identidade de domicílio fiscal. Embora o domicílio fiscal comum possa prefigurar meio de prova qualificada, esta, no entanto, não poderá ser a exclusiva, pelos motivos já apontados.
 
Assim, os contribuintes que, vivendo em união de facto, tal como definida pela lei respetiva e que não tenham atempadamente procedido à alteração do seu domicílio fiscal, não poderão deixar de beneficiar do regime de tributação conjunta por que tenham optado, sem prejuízo da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber, nos termos do n.º 4 do artigo 117.º, do RGIT.
 
III – Recomendação
 
De acordo com as motivações acima expostas e nos termos do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do Provedor de Justiça,
 
Recomendo:
 
  1. A revisão das instruções transmitidas aos Serviços de Finanças, em 14/07/2008, sobre a temática em apreço, por forma a permitir a prova da união de facto dos sujeitos passivos que pretendam exercer a opção pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, por qualquer meio legalmente admissível;
  2. A revisão oficiosa, nos termos do n.º 1 do artigo 78.º da LGT, das liquidações de IRS efetuadas em nome dos sujeitos passivos a quem foi recusada a aplicação do regime da tributação conjunta dos rendimentos, desde logo – mas não só – dos que tenham atempadamente deduzido reclamação graciosa contra as liquidações emitidas segundo o regime de tributação separada dos rendimentos familiares, apresentando a prova da sua união de facto, por período superior a dois anos, independentemente de terem (ou não) domicílio fiscal comum, pelo mesmo período temporal;
 
Nos termos do disposto no art.º 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, deverá V. Ex.ª comunicar-me o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o fundamento detalhado do seu não acatamento, no prazo máximo de sessenta dias, informando sobre a sequência que o assunto venha a merecer.
 
Com os meus melhores cumprimentos.  
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA,
 
 
(Alfredo José de Sousa)
 


[1] Com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 30/96, de 14 de agosto e, ainda, pela Lei nº 52-A/2005, de 10 de outubro.
 
[2] Artigo 14º – Uniões de facto
1 – As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
2 – A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos.
3 – No caso de exercício da opção prevista no nº 1, é aplicável o disposto no nº 2, do artigo 13º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias.
 
[3] Sobre a análise dos efeitos jurídicos da união de facto, antes e após a publicação da Lei n.º 135/99, de 28/08, cfr. MOTA, Helena “O Problema Normativo da Família:breve reflexão a propósito das medidas de protecção à união de facto adoptadas pela Lei n.º 135/99, de 28 de Agosto”, in Estudos em comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito do Porto, 2001, disponível em http://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/23945/2/2723.pdf.
 
[4] Artigo 2.ºExcepções
São impeditivos dos efeitos jurídicos decorrentes da presente lei:
a) Idade inferior a 16 anos;
b) Demência notória, mesmo nos intervalos lúcidos, e interdição ou inabilitação por anomalia psíquica;
c) Casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens;
d) Parentesco na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral ou afinidade na linha recta;
e) Condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro.
 
[5] Artigo 14.º-A – Uniões de facto
1 — As pessoas que vivendo em união de facto preencham os pressupostos constantes da lei respectiva, podem optar pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens.
2 — A aplicação do regime a que se refere o número anterior depende da identidade de domicílio fiscal dos sujeitos passivos durante o período exigido pela lei para verificação dos pressupostos da união de facto e durante o período de tributação, bem como da assinatura, por ambos, da respectiva declaração de rendimentos.
3 — No caso de exercício da opção prevista no n.º 1, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 14.º, sendo ambos os unidos de facto responsáveis pelo cumprimento das obrigações tributárias.
 
[6] Cfr. o n.º 1 do artigo 36.º, da CRP, que confere a todos “o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”. Colocando a norma em primeiro lugar o direito a constituir família e, em segundo, o direito de contrair casamento, abre o caminho à proteção da família independentemente do casamento, incluindo a que tem por fonte a “união de facto”.
 
[7] – Cfr. MOREIRA, Vital e CANOTILHO, J. J. Gomes, “Constituição da República Portuguesa” – Anotada e Comentada, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2007, pág. 345.
 
[8] – Vejam-se, a título de exemplo, as formalidades e a obrigatoriedade de registo do “pacte civil de solidarité”, aprovado em França pela Loi 99-994, du 15 novembre 1999.
 
[9] – Cfr. SOUSA, Alfredo José de e PAIXÃO, José da Silva , “Código de Processo Tributário” – Comentado e Anotado – 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 1998, a fls. 152.
 
[10] – Cfr. MESQUITA, Maria Margarida Cordeiro de, “Domicílio fiscal ou residência?”, in “Estudos dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa”, Lisboa, Universidade Católica, 2002.
[11] SOUSA, Jorge Lopes, “Código de Procedimento e de Processo Tributário”, Anotado e Comentado, Volume I, 6.ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011.
 
[12] Artigo 2.º -A – Prova da união de facto
1 — Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível.
2 — No caso de se provar a união de facto por declaração emitida pela junta de freguesia competente, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles.
3 — Caso a união de facto se tenha dissolvido por vontade de um ou de ambos os membros, aplica -se o disposto no número anterior, com as necessárias adaptações, devendo a declaração sob compromisso de honra mencionar quando cessou a união de facto; se um dos membros da união dissolvida não se dispuser a subscrever a declaração conjunta da existência pretérita da união de facto, o interessado deve apresentar declaração singular.
4 — No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.
5 — As falsas declarações são punidas nos termos da lei penal.
 
[13] – MARTINEZ, Soares, “Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra, 1993, 7.ª Edição, revista e atualizada, págs. 52 e seguintes.
[14] – No mesmo sentido, cfr. CAMPOS, Diogo Leite de e CAMPOS; Mónica Horta N. L. de, “Direito Tributário”, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 130-131.
 
[15]Cfr. NABAIS, José Casalta, “Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 154 e seguintes.
 
[16] – Acerca do grau de personalização do imposto e das técnicas para a atingir, ver SANCHES, Saldanha, “Manual de Direito Fiscal”, Lex, Lisboa, 1998, pág. 223.
 
[17] – Cfr. Casalta Nabais, ob. cit., pág. 157.
 
[18] Cfr. A. cit. e ob. cit., págs. 158-160.
 
[19]MARTINEZ, Soares, ob. cit., pág. 225.
 
[20] Sobre os diversos modelos de tributação dos rendimentos do agregado familiar nas ordens jurídicas alemã, italiana, espanhola e britânica, assim como o tratamento dado em cada uma delas às uniões de facto, ver LEITÃO, João Menezes, “A Tributação Separada da Família e Relevância das Uniões de Facto nos Sistemas Fiscais da Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido”, in “Ciência e Técnica Fiscal” n.º 396 Out./Dez. 1999, págs. 188 e ss.
O “Relatório do Grupo para o Estudo da Política Fiscal – Competitividade, Eficiência e Justiça do Sistema Fiscal”, coordenado por António Carlos dos Santos e António M. Ferreira Martins, publicado pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, em 03 de outubro de 2009, propõe como aconselhável a introdução do regime de tributação separada dos casados, motivada “pela atual inconstitucionalidade derivada do diferente tratamento entre pessoas casadas e unidas de facto”.
[21] – Em sentido semelhante, cfr. FAVEIRO, Vítor, “O Estatuto do Contribuinte – A Pessoa do Contribuinte no Estado Social de Direito”, Coimbra Editora, 2002, págs. 434 e seguintes.
 
[22] – Sobre o conceito de capacidade contributiva, vidé, entre outros, MARTINEZ, Soares, “ Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra – 7.ª ed. Revista e Atualizada, 1993, págs. 126-127 e FAVEIRO, Vítor, “O Estatuto do Contribuinte – A Pessoa do Contribuinte no Estado Social de Direito”, Coimbra Editora, 2002, págs. 478-481.
[23]NABAIS, José Casalta, “Direito Fiscal”, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 54-55.
 
[24] – Idem, pág. 157.
 
[25] – Acórdão publicado no Diário da República n.º 170, II Série, de 25/07/1997, em que, após diversas considerações sobre o princípio da capacidade contributiva, a decisão acabaria por se fundamentar na violação do princípio da igualdade.
 
[26] – Em anotação ao referido Acórdão e respectiva fundamentação, vide Casalta Nabais, “Presunções Inilidíveis e Princípio da Capacidade Contributiva”, in FISCO n.º 84/85 – setembro/outubro 98 – Ano IX, págs. 93-95.
[27] – Muito embora o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 348/97, tivesse julgado inconstitucional a presunção absoluta contida numa norma de incidência real, as disposições dos artigos 73.º da LGT e do artigo 64.º, do CPPT não distinguem entre “incidência real” e “incidência pessoal”, pelo que se julga reportarem-se a quaisquer presunções contidas em normas com aquela natureza (incidência em sentido estrito) ou até a qualquer norma de incidência ainda que em sentido lato.
São normas de incidência, em sentido estrito, as que apenas respeitam à tipificação dos factos sujeitos a imposto (pressupostos de facto, definidos em abstracto) e à determinação dos sujeitos passivos em cuja esfera jurídica os mesmos se produzem; em sentido lato, são ainda as normas de determinação da matéria tributável, por conterem o desenvolvimento das normas de incidência (em sentido estrito), as que fixam a taxa, para determinação da colecta e do imposto devido e, ainda, as que estabelecem benefícios fiscais, enquanto pressuposto negativo da formação do facto tributário, impeditivo da tributação. Em sentido semelhante, cfr. GOMES, Nuno de Sá, Lições de Direito Fiscal, Volume II, Cadernos CTF n.º 134, DGCI, 1986, págs. 52 e 57 e ss.