Exmo. Senhor
Presidente da
Câmara Municipal de  Santa Maria da Feira
 
          
 
 
Proc. Q-1573/12 (A1)
 
 
ASSUNTO: Urbanismo – operações urbanísticas – direito de petição, queixa e reclamação – taxa por apreciação de queixa – procedimento administrativo – princípio da gratuidade – imposto – restrição de direitos, liberdades e garantias políticos
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 3/B/2013
(artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
 
I
– EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS –
 
1.    Em queixa que me foi apresentada contesta-se a exigência por parte dessa câmara municipal do pagamento de uma taxa pelo simples «pedido e apreciação de queixa, denúncia ou reclamação».
 
2.    A liquidação e cobrança daquela receita fundamentam-se no Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação[1], aprovado pela Assembleia Municipal de Santa Maria da Feira, em 30 de junho de 2010.
 
 
3.    Por cada «pedido e apreciação de queixa, denúncia ou reclamação» encontra-se previsto no citado regulamento o pagamento de taxa no valor de € 25,63, a qual fica reduzida a € 15,38 se, para o mesmo efeito, for utilizado o «portal» do município (Quadro XIV, ponto 5.).
 
4.    A reapreciação da decisão final fica sujeita ao pagamento de uma taxa de montante ainda mais elevado (€ 51,25 ou € 30,75, caso seja utilizado o referido portal (Quadro XIV, ponto 5.1.).
 
5.    De acordo com o disposto no mesmo regulamento municipal «as taxas relativas a procedimentos de queixa ou denúncia são determinadas pela apreciação da situação à luz do quadro legal aplicável, pelas diligências instrutórias e pelas inspeções ao local» (artigo 86.º, n.º 4).
 
 
II.
– INSTRUÇÃO-
 
6.    Sobre o assunto, foram pedidos esclarecimentos a V. Ex. ª., dando, assim, cumprimento ao dever de prévia audição dos órgãos competentes, previsto no disposto do artigo 34.º do Estatuto do Provedor de Justiça.
 
7.    Na resposta prestada por V. Ex.ª., em 26.09.2012, não se manifesta a intenção de eliminar as normas regulamentares em causa. Isto, em síntese, com a seguinte fundamentação:
 
a)    O procedimento administrativo apenas é tendencialmente gratuito (artigos 11.º e 113.º do Código de Procedimento Administrativo[2]);
b)    As taxas dos municípios incidem sobre utilidades prestadas aos particulares, geradas pela atividade dos municípios ou resultantes da realização de investimentos municipais (artigo 15.º, n.º 2 da Lei das Finanças Locais[3]);
c)    As taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias locais ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares (artigo 3.º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais – RGTAL[4]);
d)    Aquela tipificação sobre os pressupostos dos tributos encontra-se reproduzida na Lei Geral Tributária[5] (artigo 4.º);
e)    Sobre a incidência objetiva das taxas, a Lei das Finanças Locais (artigo 10.º) e o RGTAL (artigo 6.º) apenas preveem uma enumeração exemplificativa das receitas municipais;
f)     O citado artigo 6.º da RGTAL prevê, expressamente, que as taxas municipais incidem sobre utilidades prestadas aos particulares, como sejam a prática de atos administrativos e a satisfação de outras pretensões de caráter particular;
g)    A denúncia está expressamente prevista no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação[6] – RJUE (artigo 101.º-A);
h)    Com a queixa ou denúncia particular tem início um procedimento administrativo destinado ao apuramento dos factos nela expostos e à adoção das medidas adequadas à resolução da questão apresentada;
i)     O denunciante tem o estatuto de parte no processo e deve ser notificado da decisão proferida no âmbito do mesmo procedimento;
j)      Estes processos são complexos e dão origem a atos administrativos, inspeções, vistorias, levantamentos topográficos, medições e outras operações que envolvem meios humanos e materiais;
k)    Outra posição atentaria contra os poderes tributários e regulamentares das autarquias locais, previstos, respetivamente, os artigos 238.º, n.º 4 e 241.º da Constituição.
           
 
 
III.
-ANÁLISE-
 
1.    Em matéria urbanística, estabelece o RJUE que, no exercício do seu poder regulamentar próprio, os municípios aprovam regulamentos municipais de urbanização e ou de edificação, bem como regulamentos relativos ao lançamento e liquidação das taxas e prestação de cauções que, nos termos da lei, sejam devidas pela realização de operações urbanísticas (artigo 3.º, n.º 1).
 
2.    O regulamento municipal de Santa Maria da Feira em análise estabelece os princípios e fixa as regras aplicáveis às operações urbanísticas, respetivos usos ou atividades, de forma a disciplinar a ocupação do solo e a qualidade da edificação, a preservação e defesa do meio ambiente, da salubridade, segurança e saúde pública no município (artigo 1.º).
 
3.    As taxas municipais objeto de queixa não são devidas pela realização de operações urbanísticas, mas incidem sobre os pedidos e apreciação de queixa, denúncia ou reclamação.
 
4.    A exigência de taxas nas situações descritas condiciona e pode mesmo comprometer o exercício do direito de petição, previsto expressamente na Constituição (artigo 52.º, n.º 1) o qual, em sentido genérico, abrange também a reclamação e a queixa.
 
5.    A Lei n.º 43/90, de 10 de agosto que regula e garante o exercício do direito de petição, para defesa dos cidadãos, da Constituição, das leis ou do interesse geral, define queixa como «a denúncia de qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade, bem como do funcionamento anómalo de qualquer serviço, com vista à adoção de medidas contra os responsáveis» e reclamação como a «impugnação de um ato perante o órgão, funcionário ou agente que o praticou, ou perante o superior hierárquico» (artigo 2.º, n.º s 3 e 4).
 
6.    A apresentação de queixas ou reclamações, bem como as outras de formas de exercício do direito de petição previstas na mesma lei, não pode, em caso algum, dar lugar ao pagamento de quaisquer impostos ou taxas (artigo 5.º da Lei n.º 43/90, de 10 de agosto), sob pena de se comprometer o exercício daquele direito que beneficia do regime específico dos direitos, liberdades e garantias (artigo 17.º da Constituição).
 
7.    O Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação prevê, expressamente, que qualquer pessoa tem legitimidade para denunciar às câmaras municipais (e a outras entidades competentes) a violação das normas ali previstas (artigo 101.º-A).
 
8.    Todavia, a atividade de fiscalização desenvolvida pelo município destina-se à defesa objetiva da legalidade, sem que os seus serviços atuem por conta ou no interesse do denunciante. De outro modo, as autoridades públicas atuariam como mandatários dos denunciantes, procedendo a investigações de âmbito particular.
 
9.    Acresce que a fiscalização das operações urbanísticas cuja ilegalidade se denuncia não é apenas um poder, como também um dever funcional das câmaras municipais e dos seus serviços, incumbidos de zelar pelo cumprimento da lei (artigos 93.º e ss. do RJUE).
 
10. Além disso, o particular que se queixa ou denuncia situações que indiciam a violação de normas legais e regulamentares, nem sempre aufere um benefício com o serviço público prestado. Pode, simplesmente, estar a cuidar do interesse público, o qual está confiado ao município. Nesses casos, a fiscalização tem lugar exatamente em nome do interesse público e não como um serviço prestado ao requerente. E se retira alguma utilidade, trata-se de um efeito reflexo, pois há direitos e interesses protegidos pelas mesmas normas que promovem ou salvaguardam o interesse público.
 
11.De resto, independentemente dos motivos pessoais que possam justificar a reclamação, o particular que se queixa ou que denuncia um facto ilícito está a colaborar com a Administração, suprimindo a contingência de os serviços de fiscalização procederem oficiosamente ao levantamento de todos os ilícitos urbanísticos na área do município.
 
12.Fazer depender a fiscalização do pagamento de taxas pelo autor da queixa, denúncia ou reclamação, implicaria que, na sua falta, o procedimento se extinguisse, conforme resulta do disposto no artigo 113.º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo.
 
13. Contudo, o princípio da legalidade administrativa exige dos órgãos competentes a execução das tarefas que lhes estão cometidas, sem que este dever possa ficar condicionado pelo pagamento de taxas por parte dos munícipes.
 
14. O enquadramento jurídico das taxas locais encontra-se definido sumariamente na Lei das Finanças Locais (artigo 15.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro) que estabelece alguns princípios ordenadores, remetendo o resto para o RGTAL.
 
15. As taxas das autarquias locais são tributos que assentam na prestação concreta de um serviço público local, na utilização privada de bens do domínio público e privado das autarquias ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, quando tal seja atribuição das autarquias locais, nos termos da lei (artigo 3.º do RGTAL).
 
16.Sucede que as taxas exigidas pela apreciação de queixa, denúncia ou reclamação não investem o seu autor no uso privado de um bem; não se destinam, necessariamente, a prestar-lhe uma utilidade individual e concreta, no seu exclusivo interesse e para além do que seja a corrente prestação do serviço público; nem se encontram condicionadas por um obstáculo jurídico.
 
17.Concretizando o citado artigo 3.º, prevê o artigo 6.º, n.º 1 do RGTAL que as taxas incidam sobre utilidades prestadas aos particulares ou geradas pela atividade dos municípios.
 
18. A prestação dos serviços em causa (apreciação de queixa, denúncia ou reclamação) não consta do elenco das utilidades prestadas aos particulares, previstas nos referidos diplomas.
 
19.Ora, não entra neste campo a fiscalização de atos ilícitos urbanísticos. Esta atividade destina-se a assegurar a conformidade das operações urbanísticas com as disposições legais e regulamentares aplicáveis e a prevenir os perigos que da sua realização possam resultar para a saúde e segurança das pessoas (artigos 93.º, n.º 2 do RJUE).
 
20. Ainda que se oponha que o catálogo de taxas enumeradas no artigo 6.º do RGTAL é meramente exemplificativo, existem limites à criação de taxas pelo poder local.
 
21. As taxas possuem caráter bilateral e sinalagmático, o que significa que pressupõem uma efetiva contraprestação por parte de uma autarquia a favor do sujeito passivo obrigado ao seu pagamento.
 
22. Por outras palavras, a natureza sinalagmática delimita a sua incidência objetiva que se encontra legitimada no benefício auferido pelo sujeito passivo.
 
23.Como explicava Saldanha Sanches[7]
 
«…não basta que a receita obtida por meio da taxa seja usada na cobertura de despesas respeitantes ao mesmo grupo de habitantes, à mesma comunidade local que a suporta. Terá de haver uma mais estreita correlação entre o destinatário do encargo financeiro e o beneficiário da despesa pública para que possamos estar perante uma taxa (…) O conceito de sinalagma deve ser material e incluir um qualquer equilíbrio interno que há-de passar sempre pela necessidade de a prestação pública envolver algum facere, um facere dispendioso que beneficie o sujeito passivo de forma individualizável e que deverá ser suportado por este e não pelos recursos gerais do ente público.»
 
24.Diga-se ainda que se o procedimento administrativo é tendencialmente gratuito (artigo 11.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo) então as exceções têm de encontrar-se devidamente fundamentadas, o que não parece ser o caso.
 
25.Nos termos da lei, nada permite criar taxas por apresentação de queixas, denúncias ou reclamações aos municípios. Em face do exposto, não posso deixar de assinalar a ilegalidade de que padecerá o preceito regulamentar em que se funda a exigência de quantias, a título de taxas, pela apreciação de queixas, denúncias, ou reclamações, pelo que me cumpre exortar V. Ex. ª. a ponderar a revisão das normas regulamentares em causa.
 
26.Impor um tributo por ocasião do exercício de um direito que, ao mesmo tempo, é um dever cívico, e que incumbe os municípios de cumprirem um dever funcional, revela a criação de uma receita fiscal. Na verdade, entre o facto tributário e o sujeito passivo há um nexo puramente formal.
 
 
 
                                                              IV
– CONCLUSÕES –
 
       De acordo com o exposto, entendo, no uso dos poderes que me são  conferidos pelo artigo 20.º, n.º 1, al. a), do Estatuto do Provedor de            Justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de abril, RECOMENDAR:
 
Que seja proposta à Assembleia Municipal a alteração do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação, aprovado pela Assembleia Municipal de Santa Maria da Feira, em 30 de junho de 2010, com vista à eliminação dos preceitos regulamentares que preveem a cobrança de taxa pelo pedido e apreciação de queixa, denúncia ou reclamação.
 
Permito-me fazer notar que a receção da presente Recomendação constitui V. Ex.a., nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 38.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, no dever de me comunicar, no prazo de 60 dias, da posição que vier a ser assumida em face das respetivas conclusões.
      
 
O Provedor de Justiça
 
Alfredo José de Sousa
 


[1] Publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 136, de 15 de julho de 2010.
 
 
[2] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de novembro.
[3] Aprovada pela Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro.
[4]Lei n.º 53-E/2006, de 29 de dezembro.
[5]Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro.
[6]Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro.
[7]Manual de Direito Fiscal, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pgs. 31 e ss.