Sua Excelência
a Ministra da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território
Praça do Comércio
1149-010 Lisboa
 
 
 
 
Vossa Ref.ª
       Vossa Comunicação
Nossa Ref.ª
 
 
Proc.º
R-2270/11 (A2)
 
 
 
Assunto:
Alteração do sujeito passivo da taxa de financiamento do SIRCA. Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de fevereiro.
 
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 5 /B/ 2013
 
(Artigo 8.º, n.º 1 e artigo20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril[1])
 
I
 – Enunciado – 
 
 
1. Com data de 05.08.2011, foi remetido a S. Ex.ª o Secretário de Estado da Agricultura, o ofício  cuja cópia se anexa como Doc. n.º 1 – através do qual se quis auscultar a disponibilidade da aludida Secretaria de Estado para introduzir alterações ao Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, em virtude de o mesmo ter operado uma súbita e manifestamente ilegal alteração do sujeito passivo da denominada taxa SIRCA[2], que deveria consubstanciar uma contraprestação por serviços prestados aos titulares de explorações pecuárias, no que respeita ao transporte e destruição de cadáveres dos bovinos, ovinos, suínos e equídeos mortos em exploração.
 
2. Na sequência de uma reclamação apresentada pela empresa X, confirmaram os meus colaboradores que, com a revogação do Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de outubro, operada pelo aludido diploma legal, deixaram de ser sujeitos passivos da mencionada relação tributária, os apresentantes dos animais para abate, passando ali a figurar como tal os próprios estabelecimentos de abate, que em absolutamente nada beneficiam com essa prestação de serviços[3].
 
3. Em resposta àquela comunicação, foi recebido o ofício de 28 de outubro de 2011, do Gabinete de S. Ex.ª o Secretário de Estado da Agricultura – de que se anexa cópia com vista ao integral conhecimento de Vossa Excelência – e com o qual me vejo na mais absoluta impossibilidade de concordar.
 
4. Aguardei, todavia, a alteração àquele diploma tal como ali era prometido, constatando, porém, que o Decreto-Lei n.º 38/12, de 16 de fevereiro não trouxe qualquer inovação relativamente a esta matéria em concreto.
 
II
          Apreciação   –
5. Sumariamente, transmiti, como poderá constatar, naquela missiva a S. Ex.ª o Secretário de Estado da Agricultura, a minha perplexidade pelo facto de, por força da entrada em vigor do indicado diploma legal, os sujeitos passivos da mencionada taxa já não serem os beneficiários dos serviços proporcionados pelo SIRCA mas, outrossim, os próprios agentes das operações de recolha, transporte e abate de animais mortos em exploração – ou seja, os estabelecimentos de abate.
 
6. Não ignoro, Senhora Ministra, que o Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de outubro contemplava já uma relação jurídica tributária de caráter «excecional», no que respeita ao conceito doutrinário e jurisprudencial de taxa, na medida em que não existia, mesmo ali, uma relação comutativa direta entre a prestação e a taxa cobrada, dado que a sua liquidação e pagamento não era efetivada aquando, e em razão, da prestação de serviços de recolha de animais mortos em exploração, mas em função da apresentação de outros animais para abate.
 
 7. A opção por este regime jurídico radicava nos custos inerentes àquelas operações, evitando-se, assim, a cobrança de taxas demasiado elevadas em momentos em que a perda de um animal já consubstancia um prejuízo para o seu proprietário – como, aliás, é explicado no ofício provindo da indicada Secretaria de Estado.
 
8. Esta construção jurídica nada tem de censurável, consistindo naquilo que Sérgio Vasques[4]«(…)sobre a prestação que visa compensar, mas tão só sobre facto distinto a partir do qual se infere a sua realização (…)»,definindo-o como«(…)um facto que, de acordo com as regras da experiência, permite concluir pelo aproveitamento dessa prestação administrativa é deslocada para fora do pressuposto da taxa, e passa a relevar apenas à sua finalidade, criando-se um descompasso intencional entre estes dois elementos (…)». Adianta-se ali como típica, a taxa de saneamento básico. denomina como um caso de «comutatividade indireta», assentando a taxa não
 
9. Explica o mesmo autor, que nestes casos, pese embora, «o emprego das taxas na compensação de prestações presumidas [suscite] problemas extremamente delicados na respetiva delimitação conceitual (…)», esta exceção se justifica pela sua recondução à existência de «presunções tão fortes, que se possa dizer efetiva a prestação administrativa e confiar que ela aproveita à generalidade dos sujeitos passivos» (realces nossos). Transpondo para o caso concreto, é de presumir com alto grau de probabilidade que, mais cedo ou mais tarde, qualquer titular de uma exploração pecuária acabe por usar esses serviços.
 
10. Estabelecida a legitimidade jurídica no que respeita à concreta formulação da equivalência jurídica no âmbito diploma legal debrucemo-nos sobre uma outra especificidade, daquela distinta, mas absolutamente essencial para a apreciação jurídica da taxa tal como atualmente vigora, e que se revelava através da sua incidência subjetiva.
 
11. Uma vez que o então sujeito ativo da taxa – o IFAP, primeiro, e o INGA mais tarde – enquanto titulares da receita não teriam, assumidamente, capacidade para proceder à sua arrecadação, o regime do Decreto-Lei n.º 244/2003, de 7 de outubro, definiu um mecanismo da intermediação de terceiras entidades, através da figura da «substituição tributária sem retenção na fonte»[5]. A taxa seria, assim, cobrada pelos estabelecimentos de abate aos seus clientes (apresentantes dos animais), no momento em que lhes prestavam o serviço de abate, no âmbito da sua relação normal de comércio – como se viu.
 
12. Tratava-se, assim, de uma situação jurídica linear, em que o sujeito passivo da taxa eram os clientes dos estabelecimentos de abate, sendo que estes apenas liquidavam e cobravam a respetiva taxa SIRCA, em nome do instituto que à data fosse o recipiente da respetiva receita – na sequência de protocolos celebrados entre ambas as partes.
 
13. Quer a estrutura jurídica da taxa de financiamento do SIRCA, quer o seu regime de liquidação e cobrança, tal como delineados pelo mencionado diploma legal foram oportunamente apreciados pelo Provedor de Justiça, no âmbito de um outro processo, entretanto arquivado[6], tendo sido ambos consideradas compatíveis com o ordenamento jurídico português pelas razões aduzidas.
 
14. Se aquele outro regime de taxas do SIRCA não me suscitou então dúvidas de maior, outro tanto não posso dizer do instituído pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de fevereiro, que me levou a dirigir-me ao Senhor Secretário de Estado da Agricultura.
 
15. Às dúvidas do Provedor de Justiça, respondeu a Secretaria de Estado da Agricultura nos termos que me permito transcrever na parte que reputo relevante (realces nossos também):
 
«(…)Importa sobretudo realçar que verdadeiramente em causa está assegurar a existência e a manutenção de um sistema que garanta, sem hesitações nem demoras, a recolha, o tratamento e a eliminação dos cadáveres de animais que morrem espontaneamente de modo a acautelar séria consequências para a saúde pública e para o ambiente (…).
(…)Tendo em conta este propósito é que, por questões práticas e de funcionalidade, se entendeu que os estabelecimentos de abate uma peça fundamental [n]a cobrança dos encargos de comparticipação no financiamento do SIRCA, primeiro, enquanto intermediários, e depois como diretos devedores, porque eles constituem a forma mais segura de obter a necessária comparticipação (…)».
 
16. Ciente como V. Ex.ª se encontrará, já que o Provedor de Justiça nada teve a opor à utilização dos estabelecimentos de abate enquanto «intermediários» para a liquidação e cobrança efetiva da taxa do SIRCA, perceberá por certo a veemência com que agora me oponho a que os mesmos estabelecimentos sejam por, força deste novo regime, não já meros intermediários para efeitos de cobrança da taxa, mas «diretos devedores» da mesma.
 
17. A justificação avançada pela mencionada Secretaria de Estado ao Provedor de Justiça não tem, como V. Ex.ª saberá, qualquer sustentação jurídica, dado que na relação tributária, tal como desenhada agora pelo novo regime jurídico das taxas do SIRCA, não há já a indispensável relação comutativa ou sinalagmática, mesmo que indireta, tal como era descortinável no seu anterior traço.
 
18. Como certamente concederá, esta taxa, cobrada agora diretamente aos estabelecimentos de abate, e já não apresentantes que recorrem aos mesmos para abate dos seus animais, não consubstancia uma presunção nem sequer «fraca» da existência de uma qualquer contraprestação, na medida em que os estabelecimentos de abate não são, de todo, e por qualquer perspetiva pela qual se olhe esta relação tributária, os beneficiários da prestação pela qual são constrangidos a pagar a taxa.
 
19. E, ao contrário do que aquela Secretaria de Estado parece entender, a bilateralidade das taxas é um seu pressuposto incontornável do nosso ordenamento jurídico, estabelecendo o artigo 4.º, n.º 2 da Lei Geral Tributária, expressamente, que «as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares».
 
20. É assim manifestamente impossível subverter o seu pressuposto, por «razões práticas e de funcionalidade», como pretende a Secretaria de Estado da Agricultura, com surpreendente leviandade, fazendo figurar como sujeitos passivos daquelas taxas, não os apresentantes de animais para abate, mas os próprios estabelecimentos de abate[7].
 
21. O meu repúdio pela transmutação dos estabelecimentos de abate de meros intermediários na cobrança do imposto, no âmbito de uma relação tributária em que deveriam figurar, respetivamente, como sujeito ativo, o Estado (mesmo que por via da substituição tributária sem retenção na fonte), e como sujeitos passivos, os apresentantes, não é um preciosismo jurídico negligenciável, subvertendo, ao invés e irremediavelmente, a relação jurídica tributária com tal gravidade, que se pode mesmo dizer que a transforma numa relação jurídica já de imposto[8].
 
22. Mais uma vez, socorro-me dos ensinamentos de Sérgio Vasques, para fazer valer a minha posição quanto às proporções que assume um tributo desta natureza no ordenamento jurídico português:
 
«A transição entre taxas, contribuições e impostos faz-se, portanto, através de uma longa escala graduada. Até certo ponto, a presunção em que um tributo assenta é tão forte que podemos ainda dizer efetiva a prestação administrativa, estando-se perante verdadeira e própria taxa; a partir de certo ponto, a presunção mostra-se de tal forma frágil, que a prestação se torna apenas possível ou eventual, estando-se então perante um imposto»[9] (realce nosso).
 
23. Ora, esta linear grelha concetual permite concluir, sem margem para dúvidas, que não existe, no tributo em causa, uma presunção que se possa dizer sequer frágil(recorrendo à graduação ali proposta) – como ilustra o mesmo autor ao referir-se às taxas autárquicas de publicidade – que admita dizer que, ainda assim, nos encontramos na presença de um qualquer tributo comutativo. Não existe, de facto, qualquer nexo entre a tributação e a prestação na sua configuração.
 
25. É assim que a unilateralidade facilmente detetável na «taxa» SIRCA como atualmente delineada, a desqualifica conceptualmente como taxa, precludindo o valor da «equivalência jurídica» (enquanto princípio da igualdade próprio do conceito de taxa) a que corresponde a «relação rigorosamente comutativa que nas taxas se estabelece entre a obrigação tributária e a provocação ou aproveitamento de uma prestação administrativa (…)»[10].
 
26. Estou, deste modo, plenamente convicto que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de fevereiro, emanado do Governo, não só é ilegal face à norma constante do artigo 4.º da Lei Geral Tributária, como criou mesmo um novo imposto, em desrespeito pela reserva de Lei formal, ditada pelo artigo 161.º, n.º 1, c) da Constituição da República Portuguesa (CRP).
 
27. Assim, de acordo com as motivações acima expostas e nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto do Provedor de Justiça (Lei n.º 9/91, de 9 de abril),
 
Recomendo a V. Ex.ª:
 
     Que seja de imediato alterado o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de fevereiro, no sentido serem desqualificados como sujeitos passivos da taxa SIRCA, os estabelecimentos de abate que procedem à recolha, transporte e destruição de cadáveres dos bovinos, ovinos, suínos e equídeos mortos em exploração, atenta a absoluta unilateralidade da mencionada taxa, no que diz respeito àqueles estabelecimentos.
 
 
Nos termos do disposto no artigo 38.º, n.º 2 do Estatuto do Provedor de Justiça aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de abril, deverá V. Ex.ª comunicar-me o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o fundamento detalhado do seu não acatamento, no prazo de sessenta dias, informando sobre a sequência que o assunto venha a merecer.
 
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
 
 
Alfredo José de Sousa
 
 
 
 
 
Anexo: Doc. n.º 1: Fotocópia de ofício de 5 de agosto de 2011, da Provedoria de Justiça.
Doc. n.º 2: Fotocópia de ofício de 28 de outubro de 2011, do Gabinete do Secretário de Estado da Agricultura.


[1] Na redação dada pelas Leis n.ºs 30/96, de 14 de agosto, 52-A/2005, de 10 de outubro e 17/2003 de 18 de fevereiro.
[2] O SIRCA, sistema de recolha de cadáveres de animais mortos em exploração foi criado em cumprimento do Regulamento CE n.º 1774/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de outubro, e estabelece as regras sanitárias relativas aos subprodutos nacionais não destinados ao consumo humano, nomeadamente as que decorrem da interdição em geral do enterramento de animais mortos em exploração – e destina-se a assegurar a recolha dos animais mortos em exploração, em tempo útil, isto é, de modo a permitir, nomeadamente, a despistagem obrigatória de eventuais encefalias espongiformes transmissíveis.
[3]Dispõe o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de fevereiro:«Para efeitos de financiamento do SIRCA é cobrada uma taxa aos estabelecimentos de abate relativamente a bovinos, ovinos, caprinos, suínos e equídeos, produzidos no território continental e apresentados para abate, a fixar por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da agricultura, com base nos seguintes critérios (…)».
[4]In Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2012, pág. 212.
[5]In Sérgio Vasques –«Regime das Taxas Locais – Introdução e Comentários» – Cadernos IDEFF, 2008, pág 159.
[6] Recorremos então sobretudo ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, de 19.10.2004, cuja doutrina se mantém plenamente atual para defender que a existência de um sinalagma não claudica se a prestação de serviços em causa tem lugar «não em exclusivo não em exclusivo benefício daquele que se encontra vinculado ao pagamento da taxa, mas também, ou essencialmente a terceiros, desde que àquele seja conferida também a possibilidade da sua utilização, de forma individualizável e efetiva».
[7] E se dúvidas existissem quanto às consequências do novo regime na tributação dos estabelecimentos de abate, basta atentar no Despacho n.º 1908 de 19.05.2011, proferido no âmbito do Proc. N.º 1908, do então diretor-geral dos Impostos, que recusou a possibilidade, a um estabelecimento de abate, de excluir a taxa SIRCA do valor tributável resultante da venda de suínos, nos termos do n.º 6 do artigo 16.º do Código do IVA. Rejeitou-se, assim, que as mesmas fossem consideradas pagas em nome e por conta do apresentante, impondo-se, ao invés, que essa taxa contribua para o valor tributável do estabelecimento de abate, em sede de IVA, com as legais consequências, nos termos da alínea a) do n.º 5 do artigo 16.º do mesmo código.
[8] Caraterizado este, sempre seguindo o mencionado Manuel de Direito Fiscal de Sérgio Vasques (pág. 181) como uma prestação pecuniária, coativa e unilateral, exigida com o propósito da angariação de receita.
[9]In Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2012, pág. 216.
[10]In Sérgio Vasques, «Regime das Taxas Locais – Introdução e Comentários», Cadernos IDEFF, 2008, pág. 95.