Ex..mo Senhor
Presidente da Câmara Municipal do Porto
Praça General Humberto Delgado
4049-001 PORTO
 
 
 
 
V.ª Ref.ª
I/1181123/12/CMP
Of.004183/12/CMP
V.ª Comunicação
01/07/2012
Nossa Ref.ª
Proc. Q-777/12 (A1)
 
 
 
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 6/B/2013
(artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013,
de 18 de fevereiro)
 
 
 
 
 
Assunto: Obras de conservação – Imóveis e conjuntos classificados.
 
 
1.    Dirijo-me a V. Ex.a. depois de ter concluído a apreciação de uma queixa, apresentada por indivíduo identificado, em cujo teor afirmava ter a Câmara Municipal do Porto descurado o exercício dos seus poderes de polícia urbanística relativamente a uma operação executada em imóvel sito no perímetro da zona histórica do Porto[1], classificada de interesse público pelo Decreto n.º 67/97, de 31 de dezembro. Como também a Direção Regional de Cultura do Norte se eximira de intervir adequadamente.
 
 
2.    A situação que é objeto de queixa reporta-se à afixação de uma chapa metálica, revestida por placas de fibrocimento, sobre a fachada da edificação, introduzindo um novo material no revestimento e alterando substancialmente as condições estéticas.
 
3.    Não obstante os factos preencherem o conceito de obras de alteração[2], de acordo com a definição contida no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE[3]) a câmara municipal superiormente presidida por V. Ex.a. considerou tratar-se de uma obra de simples conservação.
 
4.    E, como obra de conservação, apesar de executada em imóvel compreendido num conjunto histórico classificado, encontrar-se-ia isenta de todo e qualquer controlo municipal prévio, pois dispõe-se no artigo B-127.º, n.º 1, alínea a) do Código Regulamentar do Município do Porto[4] serem: 
 
«(…) Consideradas de escassa relevância urbanística, ficando isentas de controlo prévio municipal, segundo o disposto no artigo 6.º-A do RJUE: (…) a) Todas as obras de conservação, independentemente de serem promovidas em imóveis classificados ou em vias de classificação ou em imóveis integrados em conjuntos ou sítios classificados ou em vias de classificação, sem prejuízo do cumprimento da legislação especificamente aplicável a cada caso concreto.»
 
5.    Contra o entendimento municipal, pronunciara-se a Direção Regional de Cultura, ao arguir a falta de parecer prévio e vinculativo da sua parte, uma vez que se trata da Zona Histórica do Porto, classificada de interesse público.
 
6.    A Direção Regional de Cultura podia e deveria ter adotado as providências próprias, mas não é esse o aspeto que me leva a formular a presente Recomendação. Desse outro aspeto se cuida numa recomendação que entendi formular, do mesmo passo, a S. Ex.ª o Secretário de Estado da Cultura, com vista a reforçar os laços de cooperação com o município do Porto e a providenciar por um levantamento de normas com um efeito igual ou semelhante, nos regulamentos e posturas das demais autarquias municipais.
 
7.    A referida norma começou por me inspirar as maiores reservas quanto à sua conformidade legal, dúvidas que acabei por confirmar serem justificadas. Apesar das motivações opostas no contraditório com os serviços municipais, nada permite justificar a desconformidade com o artigo 4.º, n.º 2, alínea d), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, onde expressamente se determina estarem sujeitas a licença municipal as obras de conservação em imóveis ou conjuntos classificados no património cultural nacional.
 
8.    A razão de ser desta norma regulamentar foi-nos apresentada pelos serviços da Câmara Municipal do Porto como expressão do exercício da
 
 «autonomia local e das competências regulamentares das autarquias locais, em prol da celeridade e da eficácia na execução das obras de conservação, designadamente na zona histórica do Porto, onde são muito visíveis os sinais de degradação».
 
9.    No entanto, a conservação de imóveis ou conjuntos classificados não pode ter o mesmo cuidado que a generalidade das obras de conservação, isentas de controlo prévio pelo disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do RJUE.
 
10.Justamente por isso, o legislador ressalvou da isenção e submeteu a licença as obras de conservação nos imóveis classificados ou em vias de classificação, bem como nos imóveis integrados em conjuntos ou sítios classificados (artigo 4.º, n.º 2, alínea d), do RJUE).
 
11.A desconformidade entre uma e outra norma é manifesta, não restando dúvidas quanto à interdição constitucional de um ato de natureza regulamentar (seja do Estado, das regiões autónomas ou de um município) modificar, com eficácia externa, ou sequer interpretar, um preceito contido em ato legislativo (artigo 112.º, n.º 5, da Constituição).
 
12.Dir-se-á que os municípios beneficiam de uma ampla margem de delimitação do que consideram ser obras de escassa relevância urbanística.
 
13.É verdade e é, justamente, por esse motivo que se lhes permite, através de regulamento municipal, qualificar outras obras além das enunciadas no artigo 6.º-A, n.º 1.
 
14.Outras obras, mas não todas. Não aquelas que a lei expressamente considerou possuírem relevância urbanística, como é o caso das obras de conservação em imóveis integrados em sítios ou conjuntos classificados.
 
15.Para que não restasse dúvida alguma, o legislador renova no artigo 6.º-A, n.º 2, do citado RJUE, a afirmação perentória de que as obras e instalações em imóveis integrados em conjuntos ou sítios classificados, como é a Zona Histórica do Porto ou de qualquer outro conjunto histórico classificado, no território nacional, jamais podem ser consideradas como de escassa relevância urbanística (alínea c)).
 
16.Descortina-se uma razão pertinente para ser assim. Sob o rótulo de obras de conservação pode tratar-se de verdadeiras obras de alteração cujo efeito lesivo sobre o património arquitetónico se mostra, por vezes, irreversível.
 
17.Por outro lado, os serviços municipais opõem que a licença municipal, nestes casos, faz da câmara municipal simples intermediária «entre o promotor dos trabalhos de conservação e a Direção Regional de Cultura do Norte».
 
18.É certo que, nos termos do Decreto-Lei n.º 140/2009, de 15 de junho, o pedido de licença deve ser acompanhado por um relatório prévio (artigo 13.º) que será apreciado pela Direção Regional de Cultura, quando da autorização[5] que há de proferir (artigo 4.º). Estes elementos são remetidos pelas câmaras municipais que, no entanto, se o entenderem, podem liminarmente indeferir o pedido de licença (artigo 11.º do RJUE).
 
19.Mas, pergunto-me se não deve ser esta também uma das valências da administração municipal, graças à proximidade de que beneficiam as populações. Não se ganhará em eficiência e em celeridade fazer convergir o controlo prévio das operações urbanísticas nos municípios que, segundo cada caso, solicitam os pareceres obrigatórios a outras autoridades?
 
20.Os serviços municipais do Porto sustentam ainda que teoricamente não há qualquer défice de controlo das operações urbanísticas, apesar de a câmara municipal repudiar a necessidade de licença.
 
21.Com efeito, entendem que o proprietário do imóvel classificado deve requerer diretamente a autorização à Direção Regional de Cultura.
22.Todavia, não se encontra nenhuma disposição legal ou regulamentar que vincule o particular a fazê-lo deste modo.
23.O legislador deposita a sua confiança nas autoridades municipais e determina que estas não concedam licença para operações urbanísticas, admissão de comunicação prévia ou autorização de utilização previstas no RJUE, sem autorização da Direção Regional de Cultura ou da Direção-Geral do Património (artigo 45.º, n.º 3, da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro, e artigo 2.º, n.º 3, alínea c), do Decreto-Lei n.º 114/2012, de 25 de maio[6]).
24.Esta disposição articula-se com o disposto no artigo 13.º, n.º 1, do RJUE, onde se dispõe, sem margem para equívocos, competir ao gestor do procedimento promover a consulta às entidades que devam emitir parecer, autorização ou aprovação relativamente às operações urbanísticas sujeitas a licenciamento.
25. No artigo 13.º-B, n.º 1, concede ao particular a faculdade (e não um dever ou um ónus) de solicitar diretamente a autorização ou parecer à autoridade competente, entregando-o com o requerimento inicial do pedido de licenciamento. Mas não estipula um dever que adstrinja o promotor da operação urbanística.
26.O exercício dessa faculdade pressupõe que o interessado requeira o licenciamento de uma operação urbanística, nada dispondo o legislador quanto às operações urbanísticas isentas de controlo prévio. Por conseguinte, se deixar de o fazer, pode sempre justificar a sua omissão com a falta de uma norma que o obrigue. 
27.Em relação a outra linha de considerações, creio, Senhor Presidente, que a citada norma do Código Regulamentar do Porto produz um efeito completamente avesso à autonomia local, invocada pelos serviços municipais.
 
28.Vejamos. Se perante uma determinada obra de conservação uma câmara municipal tem objeções a formular, em nome de um património arquitetónico nacional mas que marca o seu rosto local, fica inteiramente nas mãos da Direção Regional de Cultura ou da Direção-Geral do Património Cultural, ao abdicar do licenciamento.
 
29.O que este órgão considerasse como idóneo para a Zona Histórica do Porto seria sempre definitivo se as autoridades municipais do Porto não puderem tomar posição alguma.
 
30.É que, na licença, a câmara municipal tem sempre a palavra final, podendo impedir a obra, ao indeferir a licença, com base em razões formuladas a partir da apreciação autónoma que lhe é conferida sobre o «património arqueológico, histórico, cultural ou paisagístico, natural ou edificado» (artigo 24.º, n.º 2, alínea a), do RJUE).
 
31. A Direção Regional de Cultura tem de autorizar, mas a autorização não obriga a câmara municipal a deferir a licença nem lhe retira o poder de fixar condições ou termos próprios.
 
32.Mais ainda. Logo que a Zona Histórica do Porto disponha de um plano de pormenor de salvaguarda, a câmara municipal nem sequer terá de verificar a autorização da Direção Regional de Cultura do Norte, bastando-lhe a comunicação dos licenciamentos concedidos, num prazo de quinze dias (artigo 54.º, n.º 2, da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro).
 
33.Tão-pouco o Regime Jurídico da Reabilitação Urbana[7] oferece respaldo à norma visada, apesar do seu esforço de simplificação administrativa. As consultas externas seguem o disposto no RJUE, apenas com ligeiras adaptações e que não relevam para a situação analisada (artigo 50.º).
 
34.Mesmo aquilo que se designou no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana como procedimento simplificado de controlo prévio das operações urbanísticas (artigos 53-ºA e seguintes) tem dois pressupostos com os quais não se conforma o artigo B-127.º, n.º 1, alínea a) do Código Regulamentar do Município do Porto: (i) haver plano de pormenor de reabilitação urbana e (ii) tratar-se de operação urbanística para a qual o RJUE considera suficiente a comunicação prévia.
 
35.De todo e qualquer modo, regressando a um plano estritamente jurídico-formal, a norma regulamentar em questão há de conformar-se com a lei. No caso concreto, com o disposto no artigo 4.º, n.º 2, alínea d), e no artigo 6.º-A, n.º 2, ambos do RJUE, cuja natureza de ato legislativo o coloca numa posição de supremacia.
 
36.O regulamento, mesmo o designado regulamento independente[8]José Joaquim Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, Coimbra, p. 511)., é sempre uma fonte secundária, e, por conseguinte, está impedido de contrariar o princípio da preeminência da lei e de congelar o seu grau hierárquico (
 
37.Se assim não fosse, os órgãos com poderes regulamentares poderiam furtar-se ao exercício das competências que a lei lhes atribui. Ora, as competências não são faculdades nem direitos que livremente possam deixar de ser exercidas. São poderes e, ao mesmo tempo, deveres.
 
38.A competência para licenciar ou recusar o licenciamento de obras de conservação nos imóveis que se integram em sítios ou conjuntos classificados não pode ser objeto de renúncia pelas câmaras municipais. Vale a pena recordar que a competência «é irrenunciável e inalienável» (artigo 29.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo), ao ponto de dar como nulo qualquer ato (individual ou regulamentar) «que tenha por objeto a renúncia à titularidade ou ao exercício da competência conferida aos órgãos administrativos» (n.º 2).
 
39.Uma última e breve palavra para a fiscalização das obras. É que, mesmo para as obras que a lei isentou de controlo municipal prévio, recai sobre os municípios a incumbência de procederem à fiscalização dos trabalhos, nos termos do artigo 93.º, n.º 1, do RJUE.
 
40.Esta norma deixa bem claro que se aplica a «quaisquer operações urbanísticas (…) independentemente da sua sujeição a prévio licenciamento, admissão de comunicação prévia, autorização de utilização ou isenção de controlo prévio».
 
41.Assim, deve ser determinada a fiscalização da obra no local identificado – além do mais, com o forte indício de exceder a simples conservação – para assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares aplicáveis e afastar os riscos concretos que da sua execução possam resultar para a saúde e segurança. (artigo 93.º, n.º 2).
 
42.Mesmo sem projeto de obra, estariam as autoridades municipais, após vistoria ao local, em condições de corresponder ao pedido formulado pela Direção Regional de Cultura do Norte[9], facultando melhor informação sobre a natureza e caraterísticas da intervenção efetuada no imóvel, e habilitando-a com os elementos necessários à pronúncia que, no âmbito das suas atribuições, lhe cabe levar a cabo.  
 
43.Até quando os munícipes são intimados para executarem obras de conservação (artigo 89.º do RJUE), como parece ter ocorrido, não se pode permitir que o façam ad libitum, principalmente se a operação incide na fachada de um imóvel classificado.
 
44.A intimação há de conter a indicação, não apenas de um resultado abstrato, como também de alguns dos condicionalismos a empregar no seu cumprimento e a indicação de um resultado concreto.
 
45.Posteriormente, ao apreciar a licença, a câmara municipal confere a observância das condições que tiver imposto na intimação. Aí, sim, cumpre a autonomia local.
 
46.Onde pode aperfeiçoar-se o sistema, enquanto faltam os planos de pormenor de salvaguarda, é através da celebração de contratos entre o Estado e os municípios que, nomeadamente, articulem as vistorias e intimações relativas a imóveis classificados, de tal modo que o particular seja notificado, à partida, de um ato conjunto a praticar pelas autoridades municipais e pelas direções regionais de Cultura. Foi uma das medidas que recomendei a S. Ex. a o Secretário de Estado da Cultura.
 
47.E, como as demais medidas, não com um alcance circunscrito ao município do Porto, mas a pensar na generalidade das situações que pesem ao nível das intimações para obras de conservação ordinária ou extraordinária em imóveis ou conjuntos classificados segundo critérios de natureza histórica ou arquitetónica.
 
 
 
CONCLUSÃO
            Nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, e em face das motivações precedentemente apresentadas, recomendo a V. Ex.a que suscite junto da câmara municipal a que dignamente preside a iniciativa de propor à Assembleia Municipal do Porto o disposto no artigo B-127.º, n.º 1, alínea a), do Código Regulamentar, instruindo os serviços para doravante cumprirem e fazerem cumprir a necessidade de licenciamento municipal de obras de conservação em imóveis classificados, em conjuntos ou sítios classificados ou em vias de classificação.
            Dignar-se-á V. Ex.ª comunicar-me, nos próximos 60 dias, para cumprimento do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.
 
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
 
Alfredo José de Sousa
 
 


[1] Escadas dos Guindais, freguesia da Sé.
[2] Pois eram observáveis modificações na «natureza e cor dos materiais de revestimento exterior» (artigo 2.º, alínea e))
[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, republicado pelo Decreto-Lei n.º 26/2010, de 30 de março, e alterado pela Lei n.º 28/2010, de 2 de setembro, e pelo Decreto-lLi n.º 266-B/2012, de 31 de dezembro.
[4] Aprovado pela Assembleia Municipal do Porto, em reunião de 14 de fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 56, de 19 de março, de 2008, na redação publicada sob o aviso n.º 13030/2012, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 189, de 28 de setembro de 2012.
[5] Autorização, e não parecer, como resulta do disposto no artigo 45.º, n.º 3, e no artigo 51.º, da Lei n.º 107/2001, de 8 de setembro (Bases da Política e do Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural).
[6] Orgânica das direções regionais de cultura.
[7] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 307/2009, de 23 de outubro, na redação da Lei n.º 32/2002, de 14 de agosto.
[8] Que não é sequer o caso, pelo menos da norma em questão.
[9]  Ofício.730773/6/06/2011/DRCN-N/DSBC.