Sua Excelência
O Presidente do Governo Regional dos
Açores
Palácio de Sant’Ana
Rua José Jácome Correia
9500-077 PONTA DELGADA
 
 
Vossa Ref.ª
Vossa Comunicação
 
Nossa Ref.ª
Proc. R-4326/10 (A6)
 
Assunto:Associação de Consumidores. Constituição de gabinete jurídico.
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 09 /A/2013
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
 
 
1. A questão que ora motiva a formulação da presente Recomendação soergue-se da decisão de indeferimento (despacho datado de 7 de junho de 2010, com a ref.ª SAI-SG/2010/873, Proc. n.º 64-30/01), com respeito à pretensão de uma associação de consumidores, qual seja a A…, de alterar o respetivo estatuto com vista à constituição de um Gabinete Jurídico legalmente habilitado para a prática de atos próprios de advogados e solicitadores.
 
A fundamentação da decisão negativa em causa foi, no seu essencial, remetida para as razões, de facto e de direito, constantes do Parecer N.º 6/PP/2009-G, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados (ao qual, relembre-se, a lei não atribui caráter vinculativo). Em síntese, foi, nos termos perfilhados, acompanhada a tese da não verificação, in casu, do pressuposto da defesa exclusiva dos interesses comuns, prescrito na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto.
 
Apreciada a questão, a mesma suscita-me as conclusões que ora faço presentes a Vossa Excelência.
 
2. O sentido e alcance dos atos próprios dos advogados e dos solicitadores foi definido na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, cujo propósito, realce-se, se fundou na necessidade primeira de combater a procuradoria ilícita, de molde a garantir, tanto quanto possível, a confiança dos cidadãos no funcionamento idóneo do sistema da justiça.
 
Destarte, a Lei n.º 49/2004 nucleou os atos próprios dos advogados e dos solicitadores no exercício do mandato forense e na consulta jurídica, proibindo o funcionamento de escritórios ou gabinetes não compostos exclusivamente por advogados e/ou solicitadores.
 
Foi, porém, admitido um regime excecional direcionado, inter alia, para as Pessoas Coletivas de Utilidade Pública, cujo acionamento ficou dependente da verificação cumulativa de três pressupostos:
(i)                 Que se submeta autorização específica para a prática daqueles atos (simultaneamente com o pedido de atribuição de utilidade pública ou posteriormente a este[1]);
(ii)               Que os atos praticados o sejam para defesa exclusiva dos interesses comuns em causa; e
(iii)             Que tais atos sejam individualmente exercidos por advogado, advogado estagiário ou solicitador.
 
3. A única questão que aqui cabe tratar radica na apreciação do que deva significar a «defesa exclusiva dos interesses comuns em causa».
 
Em concreto, permito-me obtemperar a interpretação que é feita pela Ordem dos Advogados, no Parecer seguido in totum pelo antecessor de Vossa Excelência, do requisito constante do art.º 6.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 49/2004, quando entendido no sentido de a expressão «interesses comuns» não poder significar «os interesses particulares de cada um dos associados e muito menos de terceiros, mas apenas os interesses comuns a todos os associados.» (cfr. Parecer N.º 6/PP/2009-G, ponto 13, parágrafo 4).
 
Desde logo, surpreende-me o facto de ser, na apreciação referenciada, utilizado o próprio definido na definição do conceito (sic, os interesses comuns em causa são os interesses que são comuns a todos os associados), circunstância que não me permite considerar a fundamentação – per relationem – da decisão administrativa em questão suficiente. Com efeito, não se vislumbra com univocidade quais os critérios concretos que terão dado arrimo à interpretação que a Ordem dos Advogados faz do normativo em questão.
 
Creio que se impõe, antes de mais, um rigoroso exercício de hermenêutica jurídica, consistente em averiguar qual terá sido a intenção ou vontade do legislador (mens ou voluntas legislatoris) vertida no texto da norma legal descrita, em particular, no conceito indeterminado «interesses comuns».
 
Na verdade, bem compreendo a dificuldade possivelmente havida na densificação de tal conceito, já que o mesmo não tem paralelo na legislação, doutrina e jurisprudência administrativistas relevantes. No entanto, correlacionado com a presente temática, é costume distinguir-se na praxis forense três noções similares: (i) interesses difusos; (ii) interesses coletivos; e (iii) interesses individuais homogéneos.
 
Na esteira de Mário Estives de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, entenderei que:
 
«(…) os interesses difusos em sentido estrito caracterizam-se por pertencerem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e recaírem sobre bens indivisíveis (…)
[…]
Os interesses colectivos, por sua vez, diferenciam-se pelo facto de a sua tutela se encontrar confiada, a título específico ou não, a uma organização ou a um ente público ou privado (uma associação, uma fundação, uma ordem profissional, uma autarquia, etc.), que age em juízo em «representação» desses interesses, podendo beneficiar, por isso, de uma «defesa colectiva». (…)
[…]
(…) os interesses individuais homogéneos – também chamados «direitos subjectivos fraccionados» – que correspondem à lesão diferenciada que se verifica na esfera jurídica de uma pessoa (ou de um conjunto determinado de pessoas) e que advém de uma causa comum (…).»
(in Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, volume I, pp. 159 e 160, sombreados meus).
 
Se é certo que as figuras jurídicas acima transcritas são comummente abordadas em um contexto (da legitimidade processual das pessoas coletivas[2]) distinto daquele que ora se trata, também acertado é, em meu entender, que as mesmas sejam transpostas, por analogia, para a análise da presente realidade, assim colmatando a dificuldade interpretativa que assombra o art.º 6.º, n.º 4, alínea b), da Lei n.º 49/2004, em obediência à unidade da ordem jurídica.
 
Nesse pressuposto, dever-se-á interpretar a expressão «interesses comuns» como abarcando duas realidades interconectadas:
(i)                 os interesses coletivos no sentido de interesses sectoriais, compostos pela soma dos interesses específicos dos seus associados, os quais se encontram globalmente institucionalizados e são reconduzíveis ao fim estatutário da entidade; e
(ii)               os interesses individuais legalmente protegidos, na medida em que estes sejam uma refração em cada indivíduo dos interesses abrangidos pelo escopo social da pessoa coletiva em causa.
 
Neste último caso, mister é que exista sempre uma real conexão entre os interesses que o indivíduo pretende tutelar e o objeto social da associação em causa, naturalmente delimitada pelo princípio da (sua) especialidade).
 
Concretizando, se a entidade que faz o pedido de autorização para a prática de atos próprios dos advogados é uma associação de defesa dos consumidores, a limitação imposta pela norma em discussão implicará tão-somente que a entidade não promova consulta jurídica ou o exercício do mandato forense relativamente a assuntos que não digam respeito à defesa dos direitos dos consumidores, enquanto tais e nos termos delimitados na legislação respetiva.
 
Efetivamente, se a associação de consumidores em causa prestar eventual consulta jurídica a um associado, essa consulta não pode deixar de considerar-se feita para defesa dos interesses comuns da associação, porquanto é a própria defesa dos direitos dos consumidores que constitui o seu fim institucional (dir-se-ia único ou pelo menos primacial).
 
Teleologicamente, ao impor a defesa exclusiva dos interesses comuns das entidades peticionantes, visou – e bem – o legislador impedir a criação de «escritórios de advocacia» sob a forma de entidades sem fins lucrativos dedicadas à defesa dos «direitos em geral» das pessoas e relativamente a matérias estranhas à qualidade de consumidor – por exemplo, no âmbito do direito da família, direitos reais, direito societário, etc. –, redundando, isso sim, numa forma de agenciamento ilegal de clientela.
 
Assim sendo, o conceito de «interesses comuns» integra, na minha perspetiva, como dois círculos concêntricos, o «interesse coletivo» da entidade e os «interesses individuais» dos membros, não perdendo estes a sua qualidade de «comuns» apenas pelo facto de, em determinado momento, se reportarem a determinado(s) associados(s) considerados individualmente. A causa petendi, direi, é sempre a mesma.
 
4. Para o sentido que ora propugno, concorre também a occasio legis da norma em questão.
 
Primeiramente, em sede de interpretação do antigo art.º 515.º do Estatuto Judiciário[3] (disposição que correspondia ao art.º 56.º, n.º 6, do anterior Estatuto da Ordem dos Advogados[4], o qual precedeu o art.º 6.º, n.ºs 3, 4 e 5 da Lei n.º 49/2004), já havia a Procuradoria-Geral da República proferido o entendimento de que não seria proibido o «funcionamento, em associações de classe e semelhantes, de secções de contencioso dirigidas por advogados e destinadas a facilitar a defesa, mesmo judicial, dos interesses legitimamente associados.»[5]
 
Dúvidas ainda houvesse e seriam as mesmas esclarecidas através da leitura do relatório da discussão na generalidade da proposta de lei que esteve na base da Lei n.º 49/2004:
«Assim, a consulta jurídica, enquanto acto próprio dos advogados e dos solicitadores, não conflitua, nem se confunde, com a prática de tais actos por outros profissionais, licenciados em Direito e não só, no âmbito do exercício das atribuições e competências das entidades em representação ou para as quais actuem, independentemente da natureza do vínculo ou da forma jurídica que as mesmas revistam.
O regime ora proposto possui uma amplitude tal que podemos afirmar que abrange todas as realidades que não sejam suscetíveis de ser qualificadas como grosseiramente ilícitas.» (publicado no Diário da Assembleia da República, I Série, N.º 99, de 24 de junho de 2004, sombreado meu).
 
E não me parece que o exercício de mandato forense ou de consulta jurídica por advogados de uma associação de consumidores em prol dos respetivos associados, relativamente a questões de Direito de Consumo, seja uma prática ilícita, e muito menos grosseiramente ilícita.
 
5. Ilícita seria, isso sim, por afronta manifesta ao Princípio da Igualdade constitucionalmente consagrado[6], interditar uma associação de consumidores de consagrar no seu seio, nos termos assinalados, atos próprios de advogados e solicitadores, não obstante esta deter competências e atribuições semelhantes a outras associações de consumidores cuja prática é a este propósito, há largos anos, reconhecida publicamente, a nível nacional, como é o caso da DECO, cujo modus operandi foi aliás aplaudido na discussão na generalidade da proposta de lei que originou a Lei n.º49/2004 (ibidem).
 
6. Uma última nota para, sem prejuízo das considerações acima tecidas, demonstrar a minha concordância com o facto de a legislação vigente não se compadecer com a possibilidade de a associação em causa exercer atos próprios de advogados relativamente aos consumidores em geral, é dizer, relativamente a terceiros (porquanto nessa situação, resulta clarividente que não se verificaria a qualidade de comunidade exigida pela lei para os interesses em causa).
 
No entanto, se é verdade que, por força do disposto no art.º 6.º, n.º 4, da Lei n.º 49/2004, eventual mandato forense e consultas jurídicas prestadas pela A… não poderão ter como destinatários pessoas não associadas, o mesmo já não vale, reitere-se à laia de conclusão, para todos os consumidores associados.
 
8. Por referência ao iter interpretativo acima proposto, recomendo a Vossa Excelência, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril (Estatuto do Provedor de Justiça),
 
a revogação da decisão que indeferiu o pedido da A… de alteração do seu estatuto de utilidade pública e, correlativamente, a concessão de autorização específica para a prática de atos próprios de advogados e solicitadores relativamente a todos os seus associados e sobre todas as matérias conexionadas com a correspetiva qualidade de consumidores.
 
Certo de que o teor da presente Recomendação merecerá a melhor atenção de Vossa Excelência, agradeço desde já a prestação da resposta prevista no art.º 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça (Lei n.º 9/91, de 9 de abril, ultimamente modificada e republicada pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro).
 
O Provedor de Justiça,
 
 
Alfredo José de Sousa
 


[1] Conforme orientação cristalizada na Ordem dos Advogados, o pedido de estatuto de utilidade pública e o pedido de autorização específica para a prática de atos próprios de advogados não têm de ocorrer simultaneamente, orientação com a qual se concorda. Vide, neste sentido, designadamente, os Pareceres N.ºs 6/PP/2009-G, E-4/06, E-1/06 e E-10/05, todos do Conselho Geral.
[2] Conforme explicitamente plasmado no art.º 60.º, n.º 3, in fine, da Constituição da República Portuguesa.
[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 278, de 14 de abril de 1962.
[4] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de 13 de março.
[5] Cfr. Parecer n.º 38/47, de 30 de junho de 1947, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 4, janeiro, 1948, pp. 66 e ss. A consulta havia sido pedida pela Associação dos Inquilinos Lisbonense, pela Associação dos Proprietários e Agricultores do Norte de Portugal e pela Associação Lisbonense dos Proprietários com o fito de ver esclarecida se a proibição de funcionamento de escritórios de procuradoria prevista no citado art.º 515.º abrangeria os serviços de contencioso a cargo de advogados ou solicitadores em benefício dos respetivos associados.
[6] Parafraseando Jorge Miranda e Rui Medeiros, denote-se que «Não obstante o artigo 13.º da Constituição, na esteira das fórmulas oitocentistas, falar em igualdade dos cidadãos, é óbvio que o princípio não pode deixar de se projectar sobre as pessoas colectivas e sobre os grupos não personalizados;» (in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Anotação ao art.º 13.º, p. 121).