A Sua Excelência
A Ministra das Finanças
Av. Infante D. Henrique, 1
1149-009 LISBOA
 
 
 
 
 
 
Vossa Ref.ª
Vossa Comunicação
Nossa Referência
 
 
Proc.
R-1266/10 (A2)
 
 
Assunto:
Queixa dirigida ao Provedor de Justiça. IRS. União de facto. Reiteração da Recomendação n.º 1/A/2013, de 11 de janeiro, dirigida ao Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 13/A/2013
(artigos 8.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril[1])
 
 
 
– I –
 
As teses em confronto
 
Trago junto de Vossa Excelência um assunto que procurei, num primeiro momento, ultrapassar com a colaboração do Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, sem que tal se tenha revelado possível.
 
Trata-se do problema que afeta cidadãos unidos de facto que, embora reunindo as condições estabelecidas pela Lei da União de Facto (Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, que a republicou em anexo) se veem impedidos do exercício da opção pelo regime de tributação aplicável, em sede de IRS, aos rendimentos dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, direito que lhes é conferido pela alínea d), do n.º 1, do artigo 3.º, da mencionada Lei da União de Facto.
 
Para facilidade de exposição e melhor elucidação de Vossa Excelência, permito-me anexar cópia da minha Recomendação n.º 1/A/2013, de 11 de janeiro (doc. n.º 1), que, creio, deixa claros os motivos da minha tomada de posição acerca deste assunto.
 
A resposta foi-me remetida através do ofício, de 8 de abril p.p., do Gabinete da Subdiretora-Geral do IR e das Relações Internacionais, que igualmente anexo (doc. n.º 2).
 
Foi com consternação que tomei conhecimento da decisão de não acatamento da mencionada Recomendação.
 
Ao que pude constatar, uma das preocupações que terá estado na base da decisão do Diretor-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira foi a de evitar situações de fraude, mormente de aproveitamento indevido do regime fiscal aplicável aos que vivem em união de facto.
 
Creia Vossa Excelência que essa é uma preocupação que partilho. De facto, não concebo um sistema fiscal eficiente e justo se o mesmo tolerar práticas de fraude e evasão fiscais, as quais inevitavelmente conduzem a que os que são tributados o sejam de forma mais gravosa do que seriam se tais situações de fraude e evasão não ocorressem.
 
Dito isto, e relida a Recomendação n.º 1/A/2013 à luz desta clarificação, parece-me de mediana clareza que nada do que nela se diz colide com esta louvável preocupação de evitar a fraude e a evasão fiscal. O que defendi e defendo é a possibilidade de ser efetuada prova de que uma união de facto existe, ainda que os sujeitos que a compõem (ou apenas um deles) não tenham, oportunamente, comunicado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) a alteração do respetivo domicílio fiscal[2].
 
Não se pugna, na mencionada Recomendação, por um tratamento leviano ou excessivamente tolerante no que diz respeito ao reconhecimento das uniões de facto. Bem pelo contrário: coloca-se o acento tónico na importância da prova de que os sujeitos passivos vivem em união de facto. Aliás, sendo o requisito legal para a atribuição do regime a que pretendem aceder a vivência em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos (o que é necessariamente diferente da manutenção de um registo de domicílio fiscal comum por esse mesmo período), não pode deixar de se exigir a prova inequívoca desse requisito.
 
Diz-se no ponto 13. do ofício de resposta à Recomendação n.º 1/A/2013 que
 
«a identidade fiscal não surge como exigência criada pelas orientações da Direção de Serviços do IRS, mas decorre da própria lei, limitando-se esta Direção de Serviços a indicar o meio adequado para essa verificação – o SGRC – Sistema de Gestão e Registo de Contribuintes – e não quaisquer outros que os sujeitos passivos entendessem apresentar para o comprovar.»
 
É, de facto, aqui que reside o problema: através da simples escolha do meio adequado para a verificação da identidade do domicílio fiscal, a AT fez tábua rasa de todo e qualquer meio de prova aceite nos termos gerais de direito, sobrepondo a qualquer desses meios de prova o meio por si eleito. Compreenderá Vossa Excelência que não possa conformar-me com tão violenta prevenção da fraude e evasão fiscais. Essa prevenção, por muito necessária e essencial que se apresente, não pode deixar de ser proporcional e razoável e neste caso estou profundamente convicto de que não o foi.
 
Ademais, não pode o Provedor de Justiça rever-se em entendimentos que colocam a forma acima da substância, pelo que a decisão que agora me foi comunicada não pode deixar de merecer o meu forte repúdio.
 
Acresce que esta prevalência da forma sobre a substância acaba, curiosamente, por abrir a porta às situações de fraude que pretende evitar. É que a declaração, para efeitos fiscais, de um mesmo domicílio fiscal ao longo de dois ou mais anos – que a AT erige em prova única e essencial da união de facto – não é, evidentemente, garantia da existência de uma verdadeira união de facto.
 
Cidadãos que coabitem com meros objetivos de partilha de despesas, sem que vivam em condições análogas às dos cônjuges, não reúnem certamente os requisitos exigidos pela Lei n.º 7/2001, de 11 de maio, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto e têm, aos olhos da AT, uma especial facilidade em «provar» uma «união de facto» inexistente.
 
Comparativamente, os cidadãos que disponham de prova fortemente indiciadora da vivência em comum nos termos exigidos pela lei supra mencionada – escrituras de compra e venda de imóveis destinados à habitação das quais consta a morada comum de ambos, correspondência dirigida a cada um dos sujeitos passivos, para aquela mesma morada, muita dela referente a filhos comuns, para referir apenas dois exemplos – mas que não tenham oportunamente atualizado o seu domicílio fiscal, estão, pela AT, absoluta e definitivamente privados da possibilidade de fazer prova da sua união de facto.
 
A injustiça da situação é agravada pela afirmação constante do ofício de resposta à minha Recomendação, de que
 
«os sujeitos passivos abrangidos pelo procedimento referido no e-mail da Direção de Serviços do IRS, de 14.07.2008, têm ao seu dispor os meios de defesa administrativa e judicial previstos nos artºs 68.º e 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, caso considerem a existência de qualquer ilegalidade.»
 
Ora, a decisão de não acatamento da Recomendação n.º 1/A/2013 deixa antever muito poucas possibilidades de resolução deste tipo de problemas pela via administrativa/graciosa, «empurrando» para a via judicial todos aqueles que, vivendo em união de facto e podendo prová-lo por diversos meios, sabem, à partida, que a não atualização do seu domicílio fiscal os impedirá de ver essa união de facto reconhecida pela AT.
 
Num momento em que grande parte dos agregados familiares atravessa momentos de graves dificuldades financeiras, é especialmente criticável um entendimento que acaba por remeter para a via judicial a resolução de problemas suscetíveis de resolução pela via graciosa.
 
Considerando o acima exposto, bem como o teor da minha Recomendação n.º 1/A/2013, de 11 de janeiro, formulo as seguintes
 
 
– II –
 
Conclusões
 
a)            A Constituição da República Portuguesa consagra a proteção da família, independentemente da forma da sua constituição (artigo 36.º, n.º 1), determinando que incumbe ao Estado «Regular os impostos e os benefícios sociais, de harmonia com os encargos familiares» (artigo 67.º, n.º 2, alínea f));
 
b)            O princípio da capacidade contributiva impõe que a tributação do rendimento das pessoas singulares seja «único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar» (n.º 1 do artigo 104.º, da Constituição da República Portuguesa), independentemente da forma da constituição do agregado familiar, por casamento ou por união de facto;
 
c)            O princípio da capacidade contributiva revela-se impeditivo da consagração de presunções absolutas de tributação, como foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 348/97 – processo n.º 63/96. Nesse sentido, dispõe o artigo 73.º, da LGT, que: «As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.»;
 
d)            O artigo 14.º do Código do IRS, enquanto norma de incidência pessoal, contém no seu n.º 2 a presunção de que, não tendo os sujeitos passivos o domicílio fiscal comum pelo período ali mencionado, não podem ser considerados como unidos de facto, para efeitos de aplicação de um regime de tributação que lhes pode ser mais vantajoso e pelo qual podem optar, na declaração de rendimentos. Pelo que ficou dito na alínea c), supra, tal presunção não pode deixar de ser ilidível;
 
e)            A constituição e a produção de efeitos jurídicos da união de facto não carecem de prova documental ad substantiam, cuja falta implicaria a sua nulidade, como o prova o facto de, contrariamente ao que acontece em outros ordenamentos jurídicos, os efeitos jurídicos dela derivados não dependerem de contrato escrito ou de inscrição em qualquer registo (civil ou de outra natureza);
 
f)             A comunicação de qualquer alteração do domicílio fiscal reporta-se exclusivamente ao âmbito formal da relação jurídico-tributária (n.º 2 do artigo 43.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário), pelo que não poderá a falta daquela comunicação ter efeitos materiais sobre a situação dos sujeitos passivos, como sejam os de impedir a aplicação de um determinado regime legal de tributação.
 
Pelo que:
 
 
Recomendo
 
Que os serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira sejam instruídos no sentido de:
 
1.    Permitirem que a prova da união de facto dos sujeitos passivos que pretendam exercer a opção pelo regime de tributação dos sujeitos passivos casados e não separados judicialmente de pessoas e bens, possa ser efetuada por qualquer meio legalmente admissível;
 
2.    Procederem à revisão oficiosa, nos termos do n.º 1, do artigo 78.º, da Lei Geral Tributária, das liquidações de IRS efetuadas em nome dos sujeitos passivos a quem foi recusada a aplicação do regime da tributação conjunta dos rendimentos, desde logo – mas não só – dos que tenham atempadamente deduzido reclamação graciosa contra as liquidações emitidas segundo o regime de tributação separada dos rendimentos familiares, apresentando a prova da sua união de facto, isto é, a prova de que vivem em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos, independentemente de terem (ou não) domicílio fiscal comum, pelo mesmo período temporal.
 
 
Nos termos do disposto no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, deverá Vossa Excelência comunicar-me o acatamento desta Recomendação ou, porventura, o fundamento detalhado do seu não acatamento, no prazo máximo de sessenta dias, informando sobre a sequência que o assunto venha a merecer.
 
 
O Provedor de Justiça,
 
 
 
(Alfredo José de Sousa)
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Anexo:
| Doc. n.º 1 – Fotocópia da Recomendação n.º 1/A/2013, de 11 de janeiro;
|Doc. n.º 2 – Fotocópia do ofício n.º 6551, de 8 de abril p.p., do Gabinete da Subdiretora-Geral do IR e das Relações Internacionais.
 


[1] Com as alterações que lhe foram introduzidas pelas Leis n.º 30/96, de 14 de agosto, n.º 52-A/2005, de 10 de outubro e, ainda, pela Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro.
 
[2] Sem prejuízo, como já ficou dito na Recomendação n.º 1/A/2013, da responsabilidade contraordenacional que ao caso couber, nos termos do n.º 4, do artigo 117.º, do RGIT.