A Sua Excelência
A Ministra de Estado e das Finanças
Av. Infante D. Henrique, 1
1100 – 278 Lisboa
 
 
 
 
 
 
 
Lisboa, 17 de agosto de 2015
 
Assunto: Domínio público – estrada sem jurisdição conhecida – deveres de conservação
 
 
Recomendação n.º6/A/2015
(alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)
 
Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face das motivações seguidamente apresentadas, recomendo a Vossa Excelência que:
determine as pertinentes averiguações e, sendo caso disso, providencie pela reparação dos danos patrimoniais em automóvel ligeiro de passageiros imputados à má conservação de uma via rodoviária, vulgarmente conhecida como Estrada da Fonte da Telha ou Estrada das Matas Nacionais, junto à Courela do Pinhal, nas imediações da Mata Nacional dos Medos, e que estabelece a ligação entre Costa da Caparica e as povoações de Vale Cavala, Marisol, Fonte da Telha e Aroeira, no concelho de Almada, entroncando com a Estrada Nacional n.º 377, por se concluir que faz parte do domínio público rodoviário do Estado, a cujos serviços incumbe a sua conservação e reparação.
Por razões de certeza e de segurança determine a declaração de afetação da via rodoviária identificada como parte do domínio público rodoviário, providenciando-se pela reparação e conservação da sua faixa de rodagem e bermas.
            Em cumprimento do disposto no artigo 34.º da citada Lei n.º 9/91, de 9 de abril, consigno que foram consideradas as explicações prestadas pelos serviços superiormente dirigidos por V. Exa, assim como os esclarecimentos prestados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., pela Câmara Municipal de Almada, pela ex-EP-Estradas de Portugal, S.A. e pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P.
 
§ 1.º ‑ Dos factos e da audição das várias autoridades públicas
Foi-me apresentada queixa pela proprietária de um automóvel ligeiro de passageiros que, em 23-06-2012, ao circular na chamada Descida das Vacas da estrada identificada embateu em cavidade não sinalizada, de onde resultou o rebentamento de um pneu.
Desde então percorreu um penoso itinerário de conflitos negativos acerca da jurisdição sobre aquela via de comunicação e acerca do dever de providenciar pela sua adequada conservação.
O município de Almada afirma perentoriamente que a estrada não integra nem nunca integrou a rede de estradas e caminhos municipais, considerando-se alheio à sua conservação e reparação.
 
A estrada não foi construída pelo município nem a expensas do município. Jamais foi objeto de transferência dominial pelo Estado, pela extinta Junta Autónoma de Estradas ou por alguma das entidades que lhe foram sucedendo[1]. Tão-pouco foi alguma vez outorgado contrato de exploração desta via nem confiada a conservação do pavimento e das bermas ao município.
Embora os serviços do município tenham afixado sinalização rodoviária na dita estrada, agiram estritamente em gestão de negócios, de modo a conter os riscos que a intensa circulação automóvel comporta para a segurança rodoviária. Fizeram-no simplesmente porque nenhuma autoridade pública se dispôs a fazê-lo.
Este percurso não surge expressamente identificado no plano dos caminhos municipais, aprovado pelo Decreto-lei n.º 45 552, de 30 de janeiro de 1964, na vasta tabela que descreve as vias municipais do distrito de Setúbal.
Opõe, e bem, que a classificação das estradas e rodovias resulta essencialmente do atual Plano Rodoviário Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de junho, em cujo artigo 13.º se determina que «as estradas não incluídas no plano rodoviário nacional integrarão as redes municipais, mediante protocolos a celebrar entre a Junta Autónoma de Estradas e as câmaras municipais e após intervenções de conservação que as reponham em bom estado de utilização ou, em alternativa, mediante acordo equitativo com a respetiva autarquia. As estradas classificadas para integração nas redes municipais, até à receção pelas respetivas autarquias, ficarão sob tutela da Junta Autónoma de Estradas, que, entretanto, lhes assegurará padrões mínimos de conservação».
Por outras palavras, não basta que determinada estrada nunca tenha figurado ou tenha deixado de figurar no Plano Rodoviário Nacional para se ter como assente que se trata de uma estrada municipal.
O território de cada município é atravessado por várias estradas, mas só aquelas que satisfaçam atribuições municipais pertencem à sua rede viária. Além da questão controvertida do domínio público viário das freguesias (caminhos vicinais), outras estradas que atravessam o território municipal são nacionais, regionais ou encontram-se afetas a especiais atribuições do Estado (defesa nacional, portos, florestas), o que explica diferentes jurisdições e diferentes incumbências de conservação.
As atribuições municipais são as que se encontram conferidas por lei (n.º 1, do artigo 237.º, da Constituição da República Portuguesa). Não são atribuições universais, ao contrário das atribuições do Estado em relação às necessidades coletivas que se propõe satisfazer por incumbência constitucional ou legislativa. Encontram-se previstas na lei e os bens do domínio público afetos a cada município são aqueles cuja identificação resulta da lei.
De acordo com a alínea ee), n.º 1, do artigo 33.º, do Novo Regime Jurídico das Autarquias Locais[2], as redes de circulação sob administração municipal ou possuem mero estatuto patrimonial ou têm de ser delimitadas por lei.
Há ainda outro facto que considero relevante e que veio ao meu conhecimento através dos serviços municipais de Almada.
O imóvel atravessado pela estrada encontra-se inscrito na matriz predial sob o artigo 24 da secção C, da freguesia da Costa da Caparica e sob o artigo rústico 1 da secção AM, freguesia da Caparica, ambos inscritos a favor do Estado.
A localização desta via rodoviária poderia sugerir a conexão com as atribuições florestais e ambientais do Estado, designadamente as que são protagonizadas por devolução de poderes à Administração Central indireta.
Se por um lado a Estrada da Fonte da Telha se encontra na proximidade de uma Mata Nacional, por outro lado percorre o interior da Área de Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica, instituída pelo Decreto-lei n.º 168/84, de 22 de maio, motivo por que os meus colaboradores interpelaram o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, I.P.
Em resposta, o Conselho Diretivo considera não dispor de jurisdição sobre a estrada, entendendo que o facto de se encontrar no perímetro da Área Protegida, como aliás outras estradas, não lhe confere a incumbência de zelar pela sua conservação[3].
Poder-se-ia dar o caso de ser uma estrada florestal, ou seja, de estar em terrenos sujeitos ao regime florestal instituído pelo Decreto de 24 de dezembro de 1901, como o estão os terrenos das matas nacionais.
Contudo, a referida estrada não se encontra sob o regime florestal, embora se apresente na orla da Mata Nacional dos Medos, cuja plantação remonta ao governo de D. João V[4] como barreira natural ao avanço das areias dunares sobre o cultivo praticado nas terras de várzea, a montante.
Aquele troço, segundo nos explica o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., encontra-se fora do perímetro florestal ou similar.
Entendem que a conservação da estrada é incumbência do município, por se encontrar descrita no Plano Diretor Municipal de Almada, como parte da Rede Rodoviária Municipal, enquanto via municipal secundária.
A Câmara Municipal de Almada, por seu turno, refuta esta qualificação. O documento a que se refere o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, IP, é apenas um documento de estudo e não integra o Plano Diretor Municipal.
Em qualquer caso, não atribuiu ao troço de estrada nenhuma qualificação juridicamente relevante.
Instado quanto à designação florestal que a cartografia e a população lhe reconhecem, o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., entende que sem estar sujeita ao regime florestal do Decreto de 24 de dezembro de 1901 de nada serve a convicção mais ou menos generalizada.
Aliás, a sua utilização não é de modo algum florestal. A estrada serve fundamentalmente a ligação às praias e entre povoações da orla costeira.
A verdade é que aquele troço é, inclusivamente, servido por uma rede de transportes coletivos de passageiros.
            Insiste o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., que as estradas não inscritas na Rede Rodoviária Nacional fazem parte da rede municipal de estradas. Louva-se no citado artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de julho, mas sem atender a que, por exemplo, as estradas desclassificadas da Rede Rodoviária Nacional só ingressam nas redes municipais por contrato administrativo (de mutação dominial).
Ora, não há registos nem sequer indícios de nenhum acordo que tenha afetado a Estrada da Fonte da Telha ao domínio público viário do município de Almada.
Interpelada a anterior concessionária EP – Estradas de Portugal, S.A[5]., também esta repudia qualquer forma de responsabilidade, porque considera que a Estrada da Fonte da Telha não faz parte das estradas nacionais (classificadas ou em vias de desclassificação) nem das estradas regionais que são objeto do contrato de concessão e que fazem ou fizeram parte dos sucessivos planos rodoviários nacionais e opõe que, por outro lado, as estradas florestais nunca pertenceram à Rede Rodoviária Nacional.
Em seu entender, as estradas não classificadas como nacionais sempre permaneceram na jurisdição dos municípios ou de outras pessoas coletivas públicas ou de direito público.
 
Por seu turno, a Direção-Geral do Tesouro e Finanças sugeriu-nos que consultássemos o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., autoridade que poderia dispor de informação sobre a quem cumpre ou deve cumprir a administração daquela via.
Todavia, o Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., limitou-se a confirmar que a estrada não integra a Rede Rodoviária Nacional e deduz que, como tal, não faz parte do domínio público do Estado. Trata-se, no seu entendimento, de uma via sob a jurisdição do município de Almada.
Não justifica esta afirmação, incorrendo na petição de princípio que consiste em considerar o domínio público municipal como uma categoria residual ou subsidiária.
Analisemos os argumentos apresentados pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças após um breve excurso sobre as normas que regulamentam a matéria e o entendimento doutrinário sobre alguns dos pressupostos das conclusões alcançadas.
 
§ 2.º ‑ Domínio público rodoviário e jurisdição
De acordo com a alínea d), do n.º 1, do artigo 84.º da Constituição da República Portuguesa, as estradas, por definição, integram o domínio público.
Compete ao legislador, nos termos do n.º 2, delimitar o domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais e definir o seu regime jurídico.
Não restam dúvidas quanto a saber que a via de comunicação em causa é verdadeiramente uma estrada. Encontra-se pavimentada, aberta ao trânsito automóvel indiferenciadamente e, como se assinalou, serve de percurso ao transporte coletivo de passageiros em carreiras regulares[6]
 
Dispõe de sinalização vertical de trânsito, de acordo com os artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro.
O facto de certa estrada não se encontrar no Plano Rodoviário Nacional não significa encontrar-se automaticamente excluída do domínio público rodoviário do Estado, entendido como «a universalidade de direito, de que o Estado é titular, formada pelo conjunto de bens afetos ao uso público viário, pelos bens que material ou funcionalmente com ele se encontrem ligados ou conexos, bem como por outros bens ou direitos que, por lei, como tal sejam qualificados» (alínea n), do artigo 3.º, do Novo Estatuto das Estradas da Rede Rodoviária Nacional, aprovado pela Lei n.º 34/2015, de 27 de abril).
Ao invés, o Regulamento das Estradas e Caminhos Municipais, aprovado pela Lei n.º 2110, de 19 de agosto de 1961, prevê que a rede viária de cada município seja delimitada por atribuição.
As estradas e caminhos municipais são demarcados por marcos de origem, quilométricos e de limites de cantão, segundo se dispõe no artigo 27.º.
Embora a título provisório, o levantamento dos caminhos municipais, encontra-se vertido no Decreto-lei n.º 45 552, de 30 de janeiro de 1964.
Em relação às estradas municipais, encontra-se no anexo ao Decreto-lei n.º 42 271, de 20 de maio de 1959.
Sem prejuízo de as redes municipais já terem desde então sido ampliadas, seja pela abertura de novas estradas e caminhos municipais, seja pela mutação dominial de estradas nacionais desclassificadas, o princípio é o da classificação das estradas e caminhos municipais por atribuição e nunca por natureza.
Ora, a Estrada da Fonte da Telha não se encontra em nenhum dos dois diplomas citados.
Não se provou que tenha sido construída pelo município de Almada nem que tenha sido transferida convencionalmente pelo Estado para o domínio público municipal.
Não excluiríamos que tenha sido executada durante o período revolucionário (1974-1976), eventualmente no âmbito de melhoramentos empreendimentos por organizações populares e com o apoio das Forças Armadas.
Como vimos, a ex-EP-Estradas de Portugal, S.A., veio opor que esta via nunca pertenceu à Rede Rodoviária Nacional, o que é confirmado pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., mas já tivemos oportunidade de ver, em termos recentemente aclarados pelo Novo Estatuto das Estradas Nacionais, que o âmbito do domínio público rodoviário do Estado não tem de coincidir com o âmbito da Rede Rodoviária Nacional.
A Direção-Geral do Tesouro e Finanças entende que, face ao tipo de via e à utilização que lhe está a ser dada, e não havendo norma que a associe ao elenco dos bens do domínio público do Estado, a estrada florestal estará inserida em domínio público municipal.
Desconsiderou, no entanto, a circunstância de os bens do domínio público municipal o serem por definição, contrariamente ao que sucede com a categoria residual domínio público geral do Estado.
Contra esta posição aponta a mais recente investigação científica dedicada ao domínio público.
Assim, regista Ana Raquel Gonçalves Moniz que «se atentarmos nos diversos tipos de bens qualificados como dominiais, compreendemos que para o domínio público autárquico fica apenas uma parcela do domínio público rodoviário e hidráulico, bem como os cemitérios. Efetivamente, decorre, desde logo do Decreto-lei n.º 477/80, mas também de outros diplomas avulsos, que os demais tipos de coisas classificados como dominiais integram o domínio público estadual, salvaguardados os casos em que, por força do disposto nos estatutos político-administrativos das regiões autónomas, se incluem no domínio público regional»[7].
De resto, esta conceção bate certo com o caráter unitário do Estado, não obstante a autonomia política das Regiões Autónomas e a autonomia administrativa das autarquias locais (artigo 6.º da Constituição).
O carácter unitário do Estado não pode deixar de refletir-se na repartição dos bens do domínio público.
Um Estado unitário não é uma associação ou confederação de municípios. A relação entre o Estado e os municípios descortina-se de modo contrário ao que se verifica nos estados compostos, designadamente nas relações entre a federação e cada um dos estados federados.
A consequência inelutável desta afirmação para o caso que nos ocupa é a de que, sem outra especificação em contrário, uma estrada que é por natureza parte do domínio público (alínea d), do n.º 1, do artigo 84.º da Constituição), é também parte do domínio público do Estado, sempre que a lei não disponha em contrário (n.º 2).
Vejamos ainda a questão a partir de outro ângulo.
Em nome da função social da propriedade privada, consideram-se pertencer ao património do Estado os imóveis sem dono conhecido (artigo 1345.º do Código Civil).
Ao invés do que sucede com os bens móveis, o legislador entendeu salvaguardar os imóveis contra as incertezas que resultariam da sua qualificação como res nullius
Contrapõe a Direção-Geral do Tesouro e Finanças que não é aplicável o artigo 1345.º do Código Civil ao estatuto jurídico da estrada, pois enquanto bem dominial jamais poderia integrar o património do Estado.
Não está em causa presumir que a estrada faz parte do património do Estado e com isso renunciar à sua inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, como atributos mais notórios do lugar que ocupam os bens do domínio público, fora do comércio jurídico (artigos 18.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto).
O que está em causa, isso sim, é que a presunção da propriedade de imóveis sem dono conhecido vale, por maioria de razão, para os imóveis do domínio público.
Os imóveis dominiais públicos sem titular conhecido devem considerar-se do Estado.
Propriedade e domínio público não são antónimos.
De resto, e como explica Ana Raquel Gonçalves Moniz, o «estatuto da dominialidade pressupõe um direito de propriedade (pública) sobre o bem»[8].
E já Marcello Caetano identificava, na raiz do regime das coisas públicas, «o exercício de um verdadeiro direito de propriedade pública das pessoas administrativas a cujos fins elas estão afetadas»[9].
Se perante um imóvel sem dono conhecido o Estado deve considerá-lo como património seu, seria incongruente que os imóveis do domínio público só por exceção pertencessem ao Estado, havendo de presumir-se que integrariam o domínio público municipal, das freguesias ou das Regiões Autónomas.
O que não pode aceitar-se é que uma estrada pública não seja de ninguém. Tem de haver um critério e esse critério, por todas as razões apontadas, conduz-nos ao Estado e ao seu domínio público.
Dir-se-ia que esta posição justificaria imputar ao Estado a responsabilidade por tudo quanto servisse de via de circulação, ainda que se limitasse às caraterísticas dos antigos caminhos vicinais ou dos atravessadouros.
Não é assim. Nos termos constitucionais, o estatuto dominial é apenas das estradas (alínea d), do n.º 1, do artigo 84.º da Constituição).
Na falta de uma definição de estrada, o Novo Estatuto das Estradas Nacionais permite-nos uma delimitação do conceito, a partir de alguns conceitos.
Assim, o conceito de eixo da estrada, definido como «a linha materializada ou não, de separação dos dois sentidos do trânsito ou, no caso de existir separador, a linha que o divide ao meio, ou ainda, no caso dos ramos dos nós de ligação entre estradas da rede rodoviária nacional ou entre estas e estradas não incluídas na rede rodoviária nacional, a linha, materializada, ou não, que divide ao meio a faixa ou faixas de rodagem que constituem o ramo do nó» (artigo 3.º, alínea o)).
Outro indício para recensear o que deve possuir uma estrada é o conceito de zona de estrada: «o terreno ocupado pela estrada e seus elementos funcionais, abrangendo a faixa de rodagem, as bermas, as obras de arte, as obras hidráulicas, as obras de contenção, os túneis, as valetas, os separadores, as banquetas, os taludes, os passeios e as vias coletoras» (alínea uu) do artigo 3.º).
Se recuarmos ao Plano Rodoviário Nacional aprovado pelo Decreto-lei n.º 34593, de 11 de maio de 1945, apesar de revogado, ali podemos colher características técnicas das estradas no seu confronto com os simples caminhos municipais (basta que permitam o trânsito automóvel, nos termos da alínea a) do artigo 6.º) ou com os caminhos vicinais (destinam-se ao apenas trânsito rural, nos termos da alínea b), do mesmo artigo).
Assim, por exemplo, uma via cuja faixa de rodagem se limite a 2,50 m e cujos raios de curvatura em planta sejam iguais ou inferiores aos delimitados no artigo 40.º do citado Plano, provavelmente configura um simples caminho público.
A sua qualificação dominial dependerá dos critérios que a jurisprudência tem fixado, como o uso imemorial ou a beneficiação custeada como despesa pública.
No caso concreto, não restam dúvidas sobre as características de estrada e a tudo isto acresce, não o esqueçamos, que a matriz predial identifica o prédio rústico atravessado pela Estrada da Fonte da Telha como coisa do Estado.
Por fim, considero que, no termo deste quase inextrincável conflito negativo, seria irrazoável opor à proprietária do automóvel a prescrição enunciada no artigo 498.º, por decorridos três anos desde a ocorrência do dano (em 2012.06.23).
Dá-se por verificado o dever de justiça a que alude o disposto no artigo 402.º do Código Civil, e a cujo cumprimento não pode este órgão do Estado ficar alheio.
 
§ 3.º – Conclusões
(i)                 A designada Estrada da Fonte da Telha, Estrada Florestal ou Estrada das Matas Nacionais, sita junto a uma área urbana de génese ilegal, denominada Courela do Pinhal, no lugar da Aroeira, e que liga a Costa da Caparica às praias e a outras povoações, além de entroncar com uma estrada nacional, não tem de ser necessariamente qualificada como estrada municipal.
(ii)               O facto de a jurisdição sobre a estrada ser recusada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, I.P., pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I.P., e pela antiga EP – Estradas de Portugal, S.A., não afasta o seu estatuto dominial nem impede a direta jurisdição pelo Estado.
(iii)              O conceito de domínio público rodoviário do Estado, hoje claramente definido na alínea n), do artigo 3.º, do Novo Estatuto das Estradas Nacionais, permite reconhecer sem demasiadas subtilezas que o seu âmbito se estende bastante além do universo designado Rede Rodoviária Nacional.
(iv)              O caracter unitário do Estado (artigo 6.º da Constituição) não se reduz ao campo legislativo, antes conhece projeção ampla no direito administrativo e, em especial, na delimitação do domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, nos casos em que a lei (n.º 2 do artigo 84.º da Constituição) tenha deixado em branco algum aspeto.
(v)                Não sendo aceitável a existência de uma via rodoviária em utilização sem que se conheça o responsável pela sua conservação, valem as razões que determinam a presunção de pertencerem ao património do Estado os imóveis sem dono conhecido.
(vi)              O Estado deve chamar a si o conhecimento dos danos patrimoniais num automóvel ligeiro e que são imputados pela proprietária à exígua ou nula conservação de uma estrada onde, embora circule uma carreira de transportes coletivos de passageiros e um fluxo muito significativo de tráfego sazonal para acesso às praias, vinha permanecendo sob jurisdição desconhecida.
(vii)             Por imperativos de segurança, deve a referida estrada ser objeto de beneficiação e deve ser reconhecida expressamente a sua afetação ao domínio público do Estado, sem prejuízo de ulteriormente poder vir a ser confiada a gestão a uma entidade com atribuições especiais.
                Dignar-se-á Vossa Excelência, Senhora Ministra, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 38.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, transmitir-me, dentro de 60 dias, a posição que entender assumir.
 
 
 
O Provedor de Justiça
 
 
 
(José de Faria Costa)


[1] Instituto das Estradas de Portugal, EP – Estradas de Portugal, EPE, EP – Estradas de Portugal, SA, e desde 1-06-2015, Infraestruturas de Portugal, SA.
[2] Aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro.
[3] Quanto às atribuições do ICNF, IP, nas áreas protegidas, cf. artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 135/2012, de 29 de junho.
[4] De onde a outra designação, porventura mais conhecida, Pinhal do Rei.
[5] A que sucedeu por fusão com a REFER, EPE, a Infraestruturas de Portugal, S.A.
[6] Explorados por Transportes Sul do Tejo, S.A.
[7] «Domínio público local: noção e âmbito», in Domínio Público Local, Ed. CEJUR – Centro de estudos Jurídicos do Minho, Braga, 2006, p. 19.
[8] O Domínio Público: o critério e o regime jurídico da dominialidade, Ed. Almedina, Coimbra, 2005, pp. 320-321
[9] Manual de Direito Administrativo, vol. II, Ed. Almedina, Coimbra, 11ª ed., 1986, pp. 894 e ss.