Sua Excelência

O Ministro do Ambiente

Rua de «O Século», 51

1200-433 Lisboa

 

– por protocolo –

 

 

Lisboa, 17 de agosto de 2016

 

Assunto:    Bairros de Santa Filomena e 6 de Maio, demolições executadas pela Câmara Municipal da Amadora. Programa Especial de Realojamento nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto (PER)

 

Recomendação n.º 3/B/2016

(Alínea b), n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

 

 

Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face das motivações seguidamente apresentadas, recomendo a Vossa Excelência que:

 

Em prazo não superior a cento e oitenta dias, seja adotada iniciativa legislativa tendente a rever o Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de maio, que aprovou o Programa Especial de Realojamento nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto (PER), o qual, por se tratar de um instrumento manifestamente desatualizado, decorridos que estão mais de vinte anos desde a sua aprovação, não tem permitido que os Municípios aderentes alcancem os objetivos pretendidos nem, tão-pouco, tem permitido dar a resposta devida aos cidadãos interessados.

 

§1.º Considerações preliminares

Na sequência de averiguação oficiosa de factos transmitidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, secundada por queixa coletiva apresentada pelo Coletivo Habita – Coletivo pelo Direito à Habitação e à Cidade, este órgão do Estado tem acompanhado ativamente, desde julho de 2012, as operações de despejo e de demolição de algumas habitações precárias nos Bairros de Santa Filomena e 6 de Maio, executadas pela Câmara Municipal da Amadora. No essencial, eram reclamadas práticas arbitrárias nas desocupações coercivas e desconsideração de preocupações sociais e humanitárias.

A requalificação dos bairros — nos quais foram sendo erigidas barracas e outras construções muito precárias, em especial a partir dos anos de 1975 e de 1976 — estava contemplada no Programa Especial de Realojamento[1] (PER), tendo sido, para o efeito, recenseadas as famílias que ali moravam.

A atualização do recenseamento dos agregados familiares, que foi sucessivamente sendo realizada de 1993 até 2013, considerou os agregados originários — sendo que, mesmo relativamente a estes, nem sempre se teve em atenção as situações de ausência prolongada por motivo de saúde ou de trabalho —, excluindo todos os novos moradores que ulteriormente se fixaram nos referidos bairros.

Para uma cabal compreensão do problema, foram consultados centenas de processos (com o intuito de verificar, designadamente, as reclamadas omissões de notificação de demolição) e realizadas visitas ao local. Desde logo, concluiu-se estarem as intervenções legitimadas pelo Acordo Geral de Adesão ao PER, celebrado em 11 de julho de 1995, pelo Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), o Instituto Nacional de Habitação (INH) e o Município da Amadora, através do qual foram colocados à disposição da Autarquia os recursos financeiros indispensáveis à concretização dos objetivos propostos em matéria de realojamento das famílias constantes do levantamento socioeconómico efetuado.

Também se concluiu pela existência de um acompanhamento de proximidade de todos os agregados residentes nos Bairros pela Divisão de Intervenção Social da Câmara Municipal da Amadora, a qual assegura atendimentos regulares em uma perspetiva de orientação na procura de alternativa habitacional e de informação quanto aos apoios de que poderão beneficiar (designadamente o Rendimento Social de Inserção, o Banco Alimentar ou a Renda Apoiada).

Simultaneamente, dúvidas não restam quanto à circunstância de ainda integrarem aqueles bairros inúmeras habitações extremamente precárias e insalubres. À precariedade material acresce uma fragilidade social tão acentuada que, por diversas ocasiões, foi convocando sucessivas intervenções do Provedor de Justiça.

            A conjuntura que observei é socialmente muito sensível, a que acresce uma relevante complexidade jurídica. Tenha-se presente, por exemplo, que os solos dos Bairros de Santa Filomena e 6 de Maio não integram, pelo menos na sua totalidade, o património do município, não se vislumbrando, também, que os respetivos proprietários tenham assegurado aos mesmos uma função útil, nem tão-pouco que os tenham adquirido sem conhecimento das construções clandestinas que, desde há várias décadas, ali foram sendo implantadas. Isto, não obstante o Decreto-Lei n.º 804/76, de 6 de novembro, dispor que:

«logo que se torne desaconselhável o prolongamento da manutenção da área de construção clandestina, pôr-se-á fim à ocupação da mesma», não apenas pela demolição, como também «expropriando-se, se for necessário, os respetivos terrenos»[2].

 

Por este motivo, sugeri à Câmara Municipal da Amadora que ponderasse a expropriação dos solos por utilidade pública, até porque era razoável antecipar que os proprietários viessem a ter um vultuoso benefício com a desocupação dos terrenos, sem terem participação ativa no custo social, designadamente com o realojamento dos moradores.

Note-se que em outros concelhos, como é o caso do de Lisboa, situações semelhantes, fortemente marcadas por desigualdades sociais, económicas, urbanísticas e ambientais, foram objeto de uma abordagem baseada em processos participativos em que se procura conciliar a visão tradicional dos decisores com as ideias dos cidadãos[3].

Acompanhei, também, a situação do Bairro da Cova da Moura, face a queixas relativas à atuação das forças de segurança. Sem prejuízo de, em cada momento, dever ser garantida a legalidade democrática — e por isso todos os direitos e deveres pela mesma conferidos — reforcei a minha convicção da necessidade de intervenção integradora não apenas urbanística, mas também social, que permita a religação à cidade, à cidadania plena, de todos os cidadãos, mormente dos que se encontram em situação fáctica de exclusão.

Há, de resto, um regime próprio que se aplica às expropriações por utilidade pública em zonas consideradas degradadas e que se encontra contemplado no Decreto-Lei n.º 273-C/75, de 3 de junho, o qual estipula que os terrenos ocupados por barracas ou «bairros de lata» serão avaliados «atendendo exclusivamente ao seu destino como prédios rústicos»[4], permitindo obter um conjunto significativo de solos para construir novas habitações a custos controlados.

A sugestão que formulei foi, todavia, rejeitada pelo município.

Não obstante, prossegui o acompanhamento das situações que suscitavam preocupações de ordem humanitária, designadamente por contingências relativas à idade, a doença grave ou invalidez e a carência económica extrema. Assinalou-se à Câmara Municipal da Amadora a necessidade de garantir a razoabilidade e a proporcionalidade próprias do exercício dos poderes públicos, de modo a que as demolições pudessem conter-se ao mínimo indispensável.

Na presente conjuntura económica e social, há imperativos de justiça que importa atender. Em dado momento apelei, mesmo, à suspensão das demolições e dos despejos, até que o município, o Estado e eventualmente outras instituições estivessem em condições de realojar todos os agregados familiares que não dispusessem de alternativa habitacional.

Chegados aqui, devo concluir que a solução passa, indubitavelmente, por uma intervenção legislativa urgente, o que me leva a dirigir a Vossa Excelência a presente Recomendação.

 

§ 2.º Breve enquadramento jurídico-constitucional

            A Constituição incumbiu o Estado de desempenhar as tarefas necessárias para assegurar a cada cidadão a dignidade social através da adoção de políticas públicas socialmente ativas que se concretizam pela criação de pressupostos materiais para a realização da democracia social e económica.

            Acresce que «todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar» (artigo 65.º da Constituição), direito este que integra o amplo catálogo de direitos sociais consagrados no texto fundamental e corporiza o princípio da democracia económica e social enquanto «mandato para a política activa sob o ponto de vista social, económico e cultural»[5], sendo o Estado responsável pela garantia das prestações necessárias a uma «existência humanamente digna».

            Por sua vez, o artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem[6] e o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[7] contemplam o direito de qualquer pessoa ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. Aliás, o direito à habitação tem sido objeto de amplo debate na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, sendo-lhe reconhecido, para além de uma dimensão positiva, cuja satisfação impõe ao Estado determinadas obrigações concretas, um conjunto de prerrogativas negativas relacionadas com o seu acesso[8], a sua ocupação[9], a sua não destruição[10] e a não expulsão dos seus ocupantes[11]. Também o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas contem um fundamento significativo do direito a uma habitação condigna no conjunto dos princípios jurídicos que constituem o direito internacional dos direitos humanos (n.º 1 do seu artigo 11.º).

 

§ 3.º Preocupações do Provedor de Justiça

Estou ciente de que o PER é um instrumento particularmente penoso e que acarreta graves dificuldades de execução para o concelho da Amadora — densamente povoado e com uma notória escassez de terrenos disponíveis para serem afetos à construção de habitação social —, mas tais circunstâncias não podem justificar a subsistência de bairros de barracas, frequentemente focos de exclusão e de desfragmentação social.

Estou, também, ciente de que o assunto em causa assume um cariz eminentemente social e que o problema ultrapassa largamente as fronteiras do Município da Amadora e, bem assim, a sua capacidade de resposta a todas as situações de carência de habitação.

Preocupa-me a circunstância de, volvidas mais de duas décadas sobre o início da sua aplicação, o PER permanecer por executar cabalmente, com as gravosas consequências sociais que tal demora implica.

Tenho presente as dúvidas que se levantam a propósito do escrupuloso cumprimento do referido diploma, o qual prevê uma rigorosa fiscalização da ocupação do solo por novas construções, a imediata demolição das barracas, uma vez realojados os agregados familiares residentes, a garantia de que a propriedade ou a posse dos terrenos indevidamente ocupados reverte a favor do Município e a afetação dos mesmos à execução do programa ou à promoção de habitação a custos controlados[12].

De resto, não foi sequer possível apurar o fim a que a Câmara Municipal da Amadora pretende destinar os terrenos desocupados, aplicando-se, na falta de planos de ordenamento do território de nível inferior (planos de pormenor ou planos de urbanização), o disposto no Regulamento do Plano Diretor Municipal da Amadora (aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 44/94, publicada no Diário da República, 1.ª série B, de 22 de junho de 1994) que os qualifica como «área urbana» ou «área de recuperação industrial», consoante o bairro.

Em termos procedimentais, assinalo, como aspeto negativo e que deve merecer melhor atenção por parte dos poderes públicos envolvidos, a ausência de notificações escritas das operações de demolição a executar, ao arrepio do que foi estabelecido pela Relatora Especial das Nações Unidas para a Habitação no relatório apresentado, em 2015, ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas[13]Mas a minha principal preocupação reside, hoje, na circunstância de não se prever uma solução condigna para os agregados familiares que, em consequência de uma fiscalização deficiente e de uma atuação retardada, se foram instalando nas construções desocupadas e fundaram, durante anos, expetativas de ali poderem continuar a residir ou de beneficiarem de programas de apoio alternativo[14] — os quais, contudo, apenas são aplicáveis aos recenseados para efeitos do PER.

A tudo isto acresce o facto de os programas promovidos pelo Estado destinados a conceder apoios à reabilitação urbana[15], e que se afiguravam como alternativa para os agregados não recenseados no âmbito do levantamento inicial do PER, terem sido desativados por falta de verbas, pese embora recentemente se assista ao resgate de alguns e à criação de novos incentivos.

Refira-se, ainda, que a crise económica dificulta, quando não impede, o sólido acompanhamento dos agregados familiares afetados, frequentemente compostos simultaneamente por crianças, idosos e cidadãos com deficiência, e que, fruto das demolições, se veem na situação de desalojados, recorrendo, tantas vezes, apenas a abrigos temporários.

 

 

§ 4.º Conclusões

À luz das motivações precedentemente expostas, e nos termos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, recomendo a Vossa Excelência que — em face da visão estratégica no domínio da habitação promovida pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 48/2015, de 15 de julho, e das iniciativas que vêm sendo desenvolvidas pela XI Comissão Parlamentar(Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação), no âmbito do grupo de trabalho dedicado ao tema «Habitação, Reabilitação Urbana e Políticas de Cidades» — seja adotada iniciativa legislativa tendente a rever o Programa Especial de Realojamento das Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 163/93, de 7 de maio, ponderando, designadamente:

a)                  Reforçar a monitorização da implementação das soluções propostas pelos Municípios no momento da celebração dos acordos gerais de adesão por forma a garantir:

i.     Uma fiscalização rigorosa da ocupação do solo por novas construções;

ii.   A imediata demolição das edificações precárias, uma vez realojados os agregados familiares residentes; e,

iii.  A afetação dos terrenos indevidamente ocupados à execução de programas de realojamento;

b)                 Promover uma melhor coordenação no acompanhamento das situações pelas várias entidades envolvidas (o Governo, o Instituto da Segurança Social e os Municípios);

c)                  Proceder a novas formas de recenseamento que permitam encontrar soluções condignas para os moradores excluídos do recenseamento inicial, tendo especial atenção aos agregados compostos por crianças, idosos e cidadãos com deficiência;

d)                 Privilegiar a implementação de programas complementares de apoio, promovendo a habitação a custos controlados para arrendamento ou venda, com aproveitamento de fogos devolutos e incentivando o recurso ao arrendamento apoiado em concelhos limítrofes realizado de forma coordenada.

Transmito, ainda, a Vossa Excelência que, em função da matéria em causa, darei conhecimento da presente Recomendação à Comissão Parlamentar de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação.

Dignar-se-á Vossa Excelência, em cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 38.º do Estatuto do Provedor de Justiça, transmitir-me, nos próximos 60 dias a posição que vier a assumir.

                Queira aceitar, Senhor Ministro, os meus respeitosos cumprimentos,

 

 

 

O Provedor de Justiça,

 

 

(José de Faria Costa)

 

 

   

Sua referência

Sua comunicação

Nossa referência

 

S-PdJ/2016/17341

Q/6312/2015



[1] Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de maio, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 271/2003, de 28 de outubro.

[2] N.º 2 do artigo 12.º.

[3] O programa BIP-ZIP – Bairros de Intervenção Prioritária / Zonas de Intervenção Prioritária criado pela Câmara Municipal de Lisboa tem permitido levar a cabo projetos de melhoria dos bairros com a participação de associações, instituições particulares de solidariedade social, paróquias, juntas de freguesia, escolas e grupos de cidadãos.

[4] Cf. N.º 4 do artigo 1.º conjugado com o n.º 3 do mesmo artigo.

[5] Veja-se a este propósito, J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra 1997, pp. 374 e ss.

[6] Esta ideia é reforçada pela redação do artigo 25.º da Declaração Universal do Direitos do Homem que dispõe que «toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento (…)».

[7] A Convenção Europeia dos Direitos do Homem vincula o Estado Português, desde 9 de novembro de 1978, data em que foi depositado o respetivo instrumento de ratificação.

[8] Cf. Acórdão Chipre c. Turquia, de 10 de maio de 2001, Queixa n.º 25781/94, http://hudoc.echr.coe.int., §§ 171 a 175.

[9] Cf. Relatório da Comissão, de 11 de janeiro de 1995, proferido no caso Buckley c. Reino-Unido, Queixa n.º 20348/92, http://hudoc.echr.coe.int., § 69.

[10] Cf. Relatório adotado pela Comissão, em 31 de outubro de 1997, no caso Isiyok c. Turquia, Queixa n.º 22309/93, http://hudoc.echr.coe.int.

[11] Cf. Decisão da Comissão de 15 de maio de 1996, proferida no âmbito do caso Röosli c. RFA, Queixa n.º 28318/95, http://hudoc.echr.coe.int.

[12] Cf. Artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de maio.

[13] Cf. Anexo 1 (princípios básicos e linhas gerais de desenvolvimento – despejos e desalojamentos) do Relatório sobre o direito à habitação como uma componente do direito à qualidade de vida e do direito à não discriminação, apresentado na 31.ª Sessão do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em 30 de dezembro de 2015.

[14] Veja-se, a este propósito, o PER famílias, o Programa de Apoio ao Auto Realojamento (PAAR+), o Programa Retorno e o Programa de Apoio ao Auto Realojamento 06/05, entre outros.

[15] Cf. O Regime Especial de Comparticipação na Recuperação de Imóveis Arrendados (RECRIA), o Regime Especial de Comparticipação e Financiamento na Recuperação de Prédios Urbanos em Regime de Propriedade Horizontal (RECRIPH) e o Programa de Financiamento para Acesso à Habitação (PROHABITA).