PROVEDOR (O) DE JUSTIÇA E A DEFESA DOS CONSUMIDORES, In PROVEDOR DE JUSTICA: RELATORIO INTERCALAR

IN PROVEDOR DE JUSTIÇA: RELATÓRIO INTERCALAR, Centro de Publicações da Provedoria de Justiça, 1991.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA E A DEFESA DOS CONSUMIDORES (*)

P. Ser Provedor de Justiça é, para um leigo como eu, ser o defensor dos pobres e oprimidos … Será mesmo assim ?

R. A ideia é, sem dúvida, muito simpática, com uma réstea de “romantismo” : a de ver no Provedor de Justiça como que um “Robin dos Bosques” lançando as flechas das boas razões nas florestas de cimento destes finais do séc. XX. Do mesmo modo, o Ministério Público é ainda olhado apenas como o defensor das “viúvas e dos orfãos”… Só que as coisas não se passam apenas assim.

O Provedor de Justiça é, como aliás resulta da Constituição e do seu Estatuto (Lei nº 9/91, de 9 de Abril),o defensor de todos os cidadãos, prevenindo e promovendo a correcção dos abusos dos poderes públicos: “tem por função principal a defesa e promoção dos direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, assegurando, através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos” (art. 1º, nº 1, daquela Lei).

Para não cair numa “contra-mitologia” eu diria que a ele cabe salvaguardar os direitos dos pobres (de justiça) e dos oprimidos (pelo império da burocracia e pela arrogância do poder). Só que esses pobres e oprimidos, assim perfigurados, pertencerão a todos os estratos sócio-económicos. De resto, se deste modo não fosse, estar-se-ia a prevaricar contra o artº 13º da Constituição, que diz, sabiamente, que ninguém pode ser discriminado, além do mais, em razão da sua situação económica ou condição social.

P. Tem o Provedor de Justiça alguma coisa a ver com a defesa do consumidor?

R. É evidente que tem, já que na defesa do consumidor estão implicados alguns dos principais direitos dos cidadãos.

Ora o Provedor de Justiça é um Orgão do Estado, totalmente independente, ao qual é atribuida uma posição institucional e um conjunto de poderes (agora reforçados por aquela Lei nº 9/91) que especialmente o vocacionam para promover a modelação e a concretização da legalidade democrática.
E perante quaisquer poderes públicos (nestes compreendidos não somente o chamado sector empresarial do Estado mas as empresas concessionárias de serviços públicos ou de exploração de bens do domínio público) pode fazer valer, com inteira disponibilidade, os direitos individuais de quaisquer cidadãos ou os direitos de todos os cidadãos,neste caso enquanto lhe cabe reagir contra as leis mal feitas, ou defeituosamente feitas ou … ainda não feitas (mas necessárias).

E a sua disponibilidade resulta mesmo das imunidades ímpares de que é dotado: por um lado, uma vez eleito pela Assembleia da República, nem por esta pode ser destituido no decurso do seu mandato (que é de 4 anos): por outro lado, “não responde civil ou criminalmente pelas recomendações,reparos ou opiniões que emita ou pelos actos que pratique no exercício das suas funções” (art. 8º, nº 1, da mesma lei). Pode falar, pois, sem temores ou reticências, embora, obviamente, “auto-sujeitando-se” à ética da responsabilidade que está na base de qualquer sociedade livre e democrática.

Repare: “auto-sujeitando-se”, já que ninguém lhe pode pedir contas enquanto estiver no exercício das suas funções.

P. Pensa que deveria haver um “provedor dos consumidores”?

R. Como já tive ocasião de dizer no meu Relatório das actividade de 1990, que apresentei à Assembleia da República e que ali teve um apoio unânime, sou abertamente contrário à criação dos provedores sectoriais; assim, designadamente, o promotor ecológico, o provedor dos deficientes, o provedor militar ou o provedor dos consumidores.

Isto sem põr em causa que todos os meios e entidades que possam ser imaginados para a justa tutela dos direitos e interesses dos cidadãos seriam, em princípio, benvindos. Só que isso implicaria uma negativa dispersão de recursos, num momento em que o que importa é potenciar aqueles que são afectados ao Provedor de Justiça.

Acresce que este está previsto na Constituição e tem uma tradição já bem estruturada na sociedade portuguesa. E não vejo vantagem em, a par do Provedor de Justiça – que, como já referi, é um Órgão do Estado, com poderes para realizar inquéritos e inspecções, com ou sem aviso, às entidades sujeitas ao seu controlo, para determinar a comparência de quaisquer pessoas na Provedoria de Justiça (que é a estrutura de apoio técnico e administrativo ao Provedor), para obrigar as entidades públicas a prestar-lhe cooperação sob pena de serem punidos pelo crime de desobediência, etc. – se criarem provedores “menores”, com escassa capacidade de meios e da interferência efectiva.

As coisas são como são e devem ser ditas com toda a frontalidade. Veja que o Provedor de Justiça tem a categoria de ministro e é membro por inerência do Conselho de Estado, sendo coadjuvado por dois Provedores-Adjuntos (que livremente pode nomear e exonerar a todo o tempo) equiparados a subsecretários de Estado, por dois coordenadores (com o nível de Directores-Gerais) e por 20 Assessores, dispondo para além disso, de um gabinete pessoal idêntico ao dos ministros.

Eu pergunto como se figuraria o provedor do consumidor. Estaria inapelavelmente “condenado” a um desiquílibrio institucional em relação ao Provedor de Justiça.

Este é que, no respeitante a tudo o que tenha a ver com os direitos dos cidadãos, deve ter a capacidade (pessoal e técnica) para exercer uma acção polivalente.

Aliás, e em remate, observarei que, como está à vista, os mais operantes e directos defensores dos consumidores deverão, numa economia social de mercado, ser eles próprios, através das suas associações. Veja-se o caso da DECO, que tem exercido uma acção infinitamente mais eficaz do que por certo teria um artificial “provedor” que a lei criasse (aliás com constitucionalidade duvidosa, já que a Constituição apenas prevê o Provedor de Justiça) e que burocraticamente exercesse o seu possível papel.

Entendo ainda que deve continuar a ser rentabilizada a acção do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor, que eu próprio imaginei, como relator do projecto alternativo da Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias que deu origem à Lei nº 29/81. Remeto-me para o que a esse propósito sustentei aquando do respectivo debate parlamentar.

P. Têm chegado à Provedoria queixas de consumidores relativamente à ofensa dos seus direitos?
Que seguimento dá a essas queixas ?

R. Obviamente que as queixas apenas poderão dizer respeito a abusos cometidos pelos serviços públicos ou pelas empresas públicas ou concessionárias de serviços públicos. Devo precisar que não são em percentagem muito significativa, atendendo a que este ano já ingressaram (até agora) na Provedoria mais de 3.000 queixas. As pessoas, muito compreensivelmente, recorrem nesse campo sobretudo às associações de defesa dos consumidores (sobretudo, claro está, à DECO) ou ao Instituto Nacional de Defesa do Consumidor. O que é, sem dúvida, uma razão adicional a desaconselhar o almejado (por alguns…) “provedor dos consumidores”.

Mas à Provedoria chegam bastantes queixas em relação a leis defeituosamente feitas (ou ás chamadas “leis – espectáculo”), a atrazos nos tribunais, a mau atendimento por parte dos serviços em contacto com o público, etc.
E, por regra, a intervenção do Provedor, contribui significativamente para a reposição dos direitos violados ou mal compreendidos.

P. O que pensa da protecção do consumidor em geral ? Entende que ele está a ser defendido ?

R. Venho desde há muitos anos a insistir na “pregação” (como diria Antônio Sérgio) de que a única forma de “reabilitar” a sociedade de consumo de massas é a de operar o seu trânsito para uma sociedade de consumidores.

Será o Estado “pós-social”, o Estado que promova que as pessoas não sejam apenas iguais perante a lei, numa perspectiva restritiva e meramente legalista, mas uma igualdade na lei e na realidade; isto tendencialmente, pois uma sociedade de pessoas absolutamente iguais, feitas como que numa operação de clonagem (qual é uma técnica de fabrico de seres absolutamente iguais, através das novas “alquimias” de reprodução biológica), não passa de uma utopia. o que importa é que as pessoas, todas elas, sejam iguais em dignidade, ressalvadas as naturais diferenças que não resultem discriminatórias.

A protecção do consumidor estará na “não-mercantilização” das pessoas, na tutela dos seus interesses individuais e, num propósito cada vez mais afirmado, na promoção dos seus direitos difusos, fragmentados ou colectivos – o mesmo que é dizer na igualação do seu poder de intervenção ao das grandes empresas perante as quais o individuo só, o homem-massa, ficará por completo inerme e desprotegido se não lhe forem reconhecidos e viabilizados novos meios de defesa.

O capitalismo incontrolado, que é bem diferente de uma economia social de mercado, dá aso à “colonização” da pessoa. Define mesmo a sua própria “qualidade de vida”, que é uma opção pessoalíssima e intransferível. Maio de 1968,com todas as suas ingenuidades e impraticabilidades, foi um tempo-eixo, no que teve de essencial. O seu “changer la vie” sintetizou ao mesmo tempo a necessidade de derrubar as barreiras que inviabilizavam um nível de vida minimamente aceitável para amplos estratos da população e a urgência em “humanizar” a vida quotidiana através de uma parificação de armas dos diferentes grupos sociais. E não é por acaso que os protagonistas desse movimento são hoje, na generalidade, bem integrados sociais-democratas.

P. E quanto ao acesso ao Direito e á Justiça? O que pensa dos tribunais de pequenas causas, das soluções arbitrais, etc. ?

R. Conto a “história” da evolução, em Portugal, da política do acesso ao Direito designadamente num estudo que em 1984 publiquei na Revista da Ordem dos Advogados (p. 523 e segs.) sobre o art. 20º da Constituição, que trata precisamente do direito das pessoas à informação, á consulta jurídica e ao patrocínio judiciário, para além da garantia real do acesso ao direito e aos tribunais.

Não me irei alongar muito na reconstituição dessa “história” até porque, em boa verdade, sou um dos seus “protagonistas’.

Sublinharei apenas que os direitos para nada valem se não forem conhecidos e praticáveis; falei então na “comunicabilidade” e inteligibilidade das leis, na inclusão do Direito na “aparelhagem cívica” das pessoas e em muitas outras coisas que, por serem triviais, até são mal conhecidas e divulgadas – o que é uma lacuna a preencher.

No domínio do direito do consumo a necessária “transparência” do sistema legal atinge um dos seus pontos máximos. Trata-se de um direito que, para além do mais, deve ter uma vocação pedagógica, para todos os seus destinatários (utentes e empresários, em sentido amplo).

Quanto aos pequenos litígios a solução óptima será a dos centros de arbitragem institucionalizada, como o Tribunal dos Conflitos de Consumo,criado com base no Decreto-Lei nº 425/86, de 27 de Dezembro. Os chamados tribunais judiciais de pequenas causas nunca passaram do papel e não se sabe bem, sequer, o que poderão vir a ser. Isto, claro está, no terreno da vida vivida e não na dócil paz dos textos.

P. O cargo de Provedor de Justiça é por vezes incómodo. Ou não ?

R. É claro que é incómodo para quem é incomodado no exercício do poder que lhe foi confiado para ser bem usado e não para servir mal os outros.

Para mim só é incómodo quando, com isenção e razão (embora sem ter a “mística” mistificadora da infalibilidade), vejo malogrados os meus propósitos de tornar a vida melhor e mais digna de ser vivida.

Sem ímpetos de cruzada ou arroubos de sublimação tenho a consciência de que sou incómodo e que o devo ser. Mal estariam as coisas se o não fosse.

P. Considera-se consumista ?

R. Como estamos em época de férias (que este ano ainda não tive) a pergunta é oportuna (para quando as tiver). É óbvio que todos somos consumistas, na medida em que consumir é uma afirmação de liberdade e até …. uma expressão de que se tem a possibilidade material de o fazer.

Não vejo, de resto, qual a distinção (essencial) entre o consumista e o consumidor. Quando muito será uma questão de grau : consumista é aquele que consome bens ou produtos que não se destinam exclusiva e estritamente às suas necessidades básicas, quase de sobrevivência. Mas haverá alguém que não goste do supérfluo ? E o que é o supérfluo ? Tudo aquilo que vai para além da cama, mesa e roupa lavada? Sou contra o “consumo dirigido”. Dirigido pelo Estado, pela publicidade enganosa, por tudo aquilo que não tenha a ver com a nossa capacidade de auto-determinação. E, está bem de ver, com a nossa capacidade de dispor de algum (mesmo que pouco) dinheiro “supérfluo”.

(*) Entrevista à revista O Consumidor, do INDC, em Setembro de 1991.

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