A antiga Tabela de Emolumentos do Registo e Notariado. Decisão do Provedor de Justiça quanto às queixas recebidas dos particulares.

I


Vários milhares de cidadãos dirigiram-se ao Provedor de Justiça reclamando do Estado a restituição dos quantitativos pagos a título de emolumentos por actos de registo e notariado, na sua quase totalidade na aquisição de habitação, fosse qual fosse o ano da respectiva cobrança.


Estas reclamações foram desencadeadas pelo anúncio de uma nova Tabela Emolumentar do Registo e Notariado, em que expressamente se estabeleceu o princípio da adequação da quantia cobrada ao custo do serviço prestado.


Este princípio foi adoptado em obediência ao imperativo de o Estado Português se conformar com a jurisprudência uniforme do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que interpretava nesse sentido uma Directiva comunitária de 1969, só agora integralmente transposta para a ordem jurídica interna.


Esta Directiva (e, por consequência, a referida jurisprudência comunitária) só se aplica a operações que envolvam reuniões de capitais societários, nada tendo que ver com os custos decorrentes da formalização de outro tipo de actos, designadamente os de aquisição de imóveis, constituição de hipotecas, etc.


É, pois, no estrito âmbito destas operações ligadas ao capital social das empresas que a equivalência económica da taxa cobrada ao custo efectivo do serviço prestado surge como uma vinculação do Estado Português.


O Estado encontrava-se, assim, em incumprimento há longos anos, em virtude de os emolumentos então cobrados pela celebração de escrituras incidentes sobre reuniões de capital aumentarem directamente na proporção do capital envolvido, não tendo, portanto, correspondência razoável com o custo do serviço prestado.


Pondo termo a esta situação, o Decreto-Lei 322-A/2001, de 14 de Dezembro, aprovou a nova Tabela de Emolumentos. Nem neste diploma, nem na Lei de autorização respectiva (Lei 85/2001), se prevê qualquer aplicação retroactiva desta Tabela (com eventual restituição das quantias já pagas), salvo em cumprimento de decisão judicial, isto no que diz respeito às sociedades.


II


Ao reformular a Tabela Emolumentar, entendeu o Legislador aplicar o princípio da adequação entre quantia cobrada e custo do serviço a todos os actos de registo e notariado.


Todavia, certo é que Portugal apenas estava vinculado a cumprir este princípio quanto às referidas operações de reuniões de capitais. Os demais actos sujeitos à cobrança de emolumentos não se encontram no âmbito de aplicação da referida directiva comunitária.


Tendo em conta as solicitações apresentadas, abriam-se ao Provedor de Justiça duas possíveis vias de actuação: requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade das normas da Tabela que vigorou até 1 de Janeiro de 2002, ou recomendar ao Governo a restituição das quantias pretendidas pelos particulares, invocando eventuais razões de Justiça.


III


Importa, assim, verificar se algum princípio ou regra constitucional se poderia considerar violado, no que diz respeito ao custo dos actos de registo e notariado não abrangidos pela citada Directiva comunitária.


A quase totalidade das reclamações, na verdade, invocava violação do princípio constitucional da proporcionalidade, parecendo assim querer significar que a exigência das quantias em causa consubstanciaria um imposto e não uma taxa. Como é sabido, o conceito de taxa distingue-se do de imposto, essencialmente por aquela constituir a retribuição de um serviço que é prestado.


Às reclamações estaria subjacente, assim, a ideia de que os valores das taxas e emolumentos pagos, por envolverem quantitativos superiores aos do custo económico do serviço prestado, seriam inconstitucionais e por isso devida a sua restituição.


Tal inconstitucionalidade derivaria do entendimento de que aquelas taxas e emolumentos representariam verdadeiro imposto, só susceptível de imposição ou autorização pela Assembleia da República e não por portaria governamental.


IV


Se o conceito de taxa no Direito Português correspondesse à solução específica contida na Directiva comunitária de 1969, ou seja, obedecesse a um princípio de equivalência económica com o serviço prestado, seria lícito pôr-se em dúvida a constitucionalidade das normas anteriormente em vigor sobre esta matéria.


Não encontra o Provedor de Justiça, contudo, suporte para defesa de tal entendimento, visto que o Tribunal Constitucional, por diversas vezes, tem decidido uniformemente que a correspectividade ou bilateralidade que caracteriza a taxa é jurídica e não económica.


O Tribunal Constitucional é, pois, bem claro ao defender que a Constituição portuguesa não exige simples equivalência económica entre a taxa exigida e o serviço em causa, bastando que este seja efectivamente prestado.


Neste enquadramento, improcederia, com toda a probabilidade, um eventual pedido de declaração de inconstitucionalidade do Provedor de Justiça ao Tribunal Constitucional.


V


Teve-se ainda presente que, só agora, ultrapassados há muito quaisquer prazos para impugnação das quantias exigidas, na esmagadora maioria das reclamações recebidas, vieram os interessados suscitar a questão.


Ora, excedidos tais prazos, tem entendido o Tribunal Constitucional equiparar os chamados casos resolvidos aos casos julgados, em termos de salvaguarda dos efeitos já produzidos, ao abrigo da ressalva expressa no art.º 282.º, n.º 3, da Constituição.


Nunca seria viável, portanto, que a hipotética decisão de inconstitucionalidade abrangesse as quantias pagas e não impugnadas em tempo.


Também nesta perspectiva um eventual pedido de declaração de inconstitucionalidade do Provedor de Justiça teria interesse irrelevante.


VI


Finalmente, ainda que assim não fosse, é seguro que o Tribunal Constitucional, tendo em atenção a sua prática e os efeitos financeiros imprevisíveis da restituição dos montantes em causa, faria uso da faculdade concedida pelo art.º 282.º, n.º 4, da Constituição.


Os efeitos dessa hipotética decisão de inconstitucionalidade seriam, assim, restringidos às situações de futuro, a partir da data do Acórdão do Tribunal.


Tal constatação, conjugada com a revogação das normas operada já em 1 de Janeiro p. p., levaria provavelmente o Tribunal Constitucional, no quadro de jurisprudência constante, a nem sequer conhecer de eventual pedido do Provedor de Justiça. Também por isto, tal pedido seria ineficaz.


VII


Não colhendo, pois, razões juridicamente consistentes em prol da pretensão dos reclamantes, restaria ao Provedor de Justiça ponderar a alternativa de formular recomendação ao Governo, estribada, porém, em possíveis razões de Justiça.


Não obstante os próprios reclamantes não terem optado pela solução de exigir directamente ao Governo o que entendem ser-lhes devido pelo Estado, a via da recomendação do Provedor não estaria, por isso, precludida, se ele a entendesse incontornável na situação em apreço.


Ponderou-se, porém, que tal recomendação seria falha de fundamentos jurídicos e careceria de sentido de equilíbrio e de equidade no quadro global dos diversos regimes de taxas vigentes no País.


Ademais, a restituição das quantias pretendidas, para todos os cidadãos que as tivessem pago (e não apenas para os reclamantes), envolveria dimensões e efeitos incalculáveis na situação financeira e orçamental do Estado Português.


Ao Provedor de Justiça não é lícito ignorar este vector de interesse nacional, que também é seu dever preservar na sua actuação.


VIII


Por todas estas razões, decidiu o Provedor de Justiça proceder ao arquivamento do processo das queixas dos particulares que se lhe dirigiram reclamando a devolução das quantias pagas a título de taxas e emolumentos por actos de registo e notariado, anteriormente à entrada em vigor da Tabela aprovada pelo Decreto-Lei 322-A/2001, de 14 de Dezembro.


 NOTA: Em Outras Decisoes encontra-se disponível um texto contendo de modo mais detalhado a fundamentação jurídica das conclusões acima explicitadas.

-0001-11-30