Acção inspectiva aos Lares e Casas de Acolhimento Temporário nos Açores revela falhas na criação de uma política integrada que conduza à desinstitucionalização segura dos menores

“O Governo Regional dos Açores deve promover políticas e medidas eficazes de apoio às famílias mais carecidas e mais desestruturadas socialmente, sem o que não se combaterá eficazmente a origem dos problemas que levam à institucionalização de menores”, refere o Provedor de Justiça no relatório sobre a acção inspectiva que levou a cabo nos 32 lares de infância e juventude (LIJ) e nas sete casas de acolhimento temporário (CAT) que asseguram o acolhimento de crianças e jovens na Região Autónoma dos Açores, agora transmitido às autoridades daquele arquipélago, bem como às instituições de acolhimento. Nascimento Rodrigues chama a atenção para a importância de “assegurar o acompanhamento sistemático não só das crianças e jovens acolhidos como, também e essencialmente, das respectivas famílias”. A par do apoio às famílias, seria importante concretizar “políticas na área da educação e da formação em prol das crianças e jovens dos Açores”.

Uma das grandes lacunas detectada na inspecção prende-se com falta de planificação quanto à forma como a vida dos menores se vai organizar após cessar o acolhimento institucional. Trata-se de uma falha importante, pois é inaceitável que as instituições dos Açores não tenham informações sobre os projectos de vida de mais de metade dos menores que acolhem. Constata-se que a actuação pública se centra na retirada dos menores das situações de perigo e não combate as causas dessas situações, que estão relacionadas com a situação da família. Ao acolhimento segue-se um relativo afrouxamento da intervenção, quando um dos objectivos cruciais da acção das autoridades públicas nestes casos deve consistir na criação de condições para uma futura desinstitucionalização segura.


A deficiente articulação entre os membros das comissões de protecção, os técnicos da Segurança Social, os tribunais e as instituições de acolhimento leva a que não dialoguem suficientemente entre si sobre a problemática de cada um dos menores. No relatório, o Provedor de Justiça recomenda um papel mais interventivo da Segurança Social na coordenação entre estas entidades, no sentido de o projecto de vida dos menores ser elaborado no prazo máximo de 60 dias após o acolhimento. Essa elaboração deverá, se tal for possível, contar com a participação do próprio, da família e da equipa técnica da instituição. Aos serviços de Segurança Social cabe ainda assegurar um acompanhamento mais sistemático, através da elaboração de informações semestrais (ou em prazo mais curto, se legalmente fixado, como na situação de reexame do acolhimento de curta duração) sobre o desenvolvimento da personalidade dos menores, o seu aproveitamento escolar e outros aspectos relevantes. Isto porque a consulta dos dados relativos aos processos individuais das crianças e jovens revelou que não tem sido cumprido o direito à revisão da medida periódica de acolhimento que lhes foi aplicada.

Nascimento Rodrigues recomendou também que seja remetido à Segurança Social, a cada três meses, um registo actualizado de todos os contactos mantidos pelos progenitores ou outros familiares das crianças e jovens institucionalizados. Este procedimento poderia suscitar “alertas” às entidades públicas dos Açores acerca da ausência de contactos entre os menores e as suas famílias e, portanto, sobre a necessidade de se adoptarem as medidas sociais que, em cada caso, forem consideradas pertinentes para a melhor defesa dos interesses das crianças. Para que os tribunais determinem a confiança de um menor a um casal, a uma pessoa singular ou a uma instituição é necessário que não existam, ou se encontrem seriamente comprometidos, os vínculos afectivos próprios da filiação, o que pode acontecer, por exemplo, quando os pais de um menor acolhido numa instituição revelem manifesto desinteresse pelo filho durante, pelo menos, três meses. Ora, verifica-se que poucas instituições têm a iniciativa de comunicar esse facto às comissões de protecção, aos tribunais ou à Segurança Social e, quando o fazem, não obedecem a nenhum prazo que, decorrido sem contactos por parte das famílias, dê obrigatoriamente lugar a comunicações.

Educação e Cuidados de Saúde


No capítulo da educação escolar, 85% das crianças e dos jovens acolhidos frequentam um dos graus de ensino, predominantemente o básico. É regra a frequência de estabelecimentos pré-escolares, o que contribui para uma adequada integração social das crianças acolhidas. A percentagem dos residentes que não frequentam a escola (14%) é próxima relativamente à dos menores que são portadores de deficiência (15,6%). Surpreende que 11% dos alunos residentes em lares não recebam apoios sociais na educação (acção social e bolsas de estudo), visto que não há indícios de que a situação dos menores acolhidos tenha variações relevantes para efeitos de obtenção de tais apoios.

Em termos de cuidados de saúde, quase 70% das crianças e jovens encontram-se em instituições que não dispõem de médico próprio nem recorrem a consultas privadas, acedendo apenas aos meios disponibilizados pelo Sistema Regional de Saúde. A questão que carece de resolução mais urgente prende-se com as dificuldades em assegurar o acompanhamento médico regular em todos os casos. Dezasseis por cento dos menores acolhidos não têm médico de família atribuído, sob alegação de sobrelotação de utentes relativamente ao número de médicos disponíveis. Há também lacunas na realização de exames de avaliação psicológica, que deveria ser sempre assegurada na fase inicial do acolhimento.

Nas visitas foram inventariadas as situações vulneráveis (consumo de álcool, tabaco e drogas), tendo o consumo de drogas sido sinalizado em seis das instituições. Embora o Instituto de Acção Social (entidade pública regional que tutela o funcionamento dos lares) estabeleça que, quando detectados estes casos, haja intervenção imediata por parte da equipa de CAT e lares, para despiste, em nenhuma das casas foi revelado conhecimento deste modelo de intervenção. Por isso, o Provedor de Justiça recomenda “que seja feito o levantamento de todas as situações de consumo de drogas nas instituições e adoptadas medidas urgentes nos casos detectados, dada a importância que assume a imediata actuação junto dos menores directamente envolvidos”.

A educação sexual assume importância na promoção de uma educação para a saúde e no combate a comportamentos de risco. Dado que essa não tem sido uma preocupação central das instituições, surge a recomendação para “que seja garantida, de preferência através de um plano integrado e tendo em conta as idades e capacidades dos destinatários, a generalização do acesso das crianças e jovens institucionalizados à informação e formação de atitudes e crenças acerca da sexualidade e do comportamento sexual.”


Estrutura das Instalações e Disciplina

Em termos de instalações, os principais motivos de preocupação prendem-se com as condições para receber portadores de deficiência física (visto que nenhuma das casas está preparada para acolher menores com mobilidade condicionada, não podendo evitar-se a dúvida sobre se haverá quem não seja institucionalizado por falta de requisitos de mobilidade nas instituições, é recomendada a realização de obras de adaptação dos edifícios) e com a segurança. Em oito das casas que acolhem crianças pequenas não foram observados dispositivos especiais tendentes a prevenir a ocorrência de acidentes domésticos e a segurança contra incêndios é deficiente em 29 das casas de acolhimento.

A acção inspectiva permitiu verificar que grande parte dos lares estão instalados em edifícios concebidos de raiz para habitação familiar, com áreas distintas e separação física entre os espaços de alojamento, convívio, higiene pessoal e serviços (cozinha, despensa, lavandaria), o que é importante no sentido de proporcionar às crianças e aos jovens acolhidos condições de vida tão aproximadas quanto possível às de uma estrutura familiar. Para alcançar esse objectivo deve também ter-se em conta o elevado número de fratias presentes em quase todas as casas e a conveniência em propiciar medidas de institucionalização conjunta. De facto, 58% das crianças têm irmãos acolhidos na mesma instituição, uma percentagem que sobe para 70% quando se analisa o acolhimento de irmãos em outra instituição.

A maioria das instalações são de pequena dimensão. Vinte e três das 39 casas existentes na Região Autónoma dos Açores têm capacidade para acolher até 10 menores e 11 acolhem até 30 residentes. Encontra-se facilitado o acesso dos residentes aos estabelecimentos de ensino, desportivos, culturais e de saúde, através de deslocações a pé (sem dependência da rede de transportes públicos ou da existência e disponibilidade de veículos das próprias instituições) dado que vinte e oito das casas encontram-se situadas em zonas habitacionais de aglomerados urbanos.

Cerca de metade dos quartos existentes nas instituições visitadas são duplos, mas observaram-se cinco camaratas com cinco camas e uma situação em que estavam seis camas no mesmo quarto. Para que esteja garantida uma maior privacidade dos menores, Nascimento Rodrigues recomenda ao Instituto de Acção Social (IAS) “que as instituições sejam instadas a assegurar a conversão das camaratas em quartos duplos e, se de todo for inviável, que as camaratas não ultrapassem as quatro camas”. Igualmente crucial é a criação de um ambiente propício para que os estudos constituam um interesse e uma prioridade. Revelam desinteresse e desinvestimento no estudo e na escolaridade os casos observados de falta de salas de estudo e do seu funcionamento em espaços partilhados com salas de estar ou resultantes de adaptação de outras áreas pouco utilizadas. A quase absoluta ausência de livros nas casas também testemunha a falta de estímulos ligados à cultura e à escola.

Recursos Humanos

No que se refere aos recursos humanos, registou-se com preocupação o generalizado desrespeito pela obrigatoriedade de constituição de equipas técnicas, imposta pela Lei de Protecção. As equipas devem ter uma constituição pluridisciplinar, integrando as valências de psicologia, serviço social e educação. Cabe-lhes fazer o diagnóstico da situação da criança ou do jovem acolhidos, bem como definir e executar o seu projecto de promoção e protecção.

Metodologia e Enquadramento Legal

Com o relatório, o Provedor de Justiça pretende fazer um retrato da população acolhida, discernindo os motivos que estiveram na base do acolhimento e os termos em que decorre o cumprimento da medida no tocante à obrigatoriedade da sua revisão periódica e à justificação da sua subsistência em face dos limites estabelecidos na lei. Através de dados recolhidos por via da observação directa e das informações prestadas pelas instituições em causa, é analisado o respeito dos direitos dos menores no que concerne à integridade pessoal, à saúde, à educação, a uma alimentação correcta, ao desenvolvimento integral, à privacidade, à liberdade de expressão, ao lazer e à manutenção dos contactos com a família e com pessoas com as quais tenham especial relação afectiva. Foi também avaliado o estado e adequação das instalações de acolhimento, assim como o percurso escolar dos menores e a possibilidade de estes terem acesso a um médico de família e a cuidados de saúde diferenciados.


A metodologia seguida passou pelo envio aos responsáveis de cada instituição de um questionário, que incluiu ficha individual a preencher relativamente a todas as crianças e jovens acolhidos, com informações sobre os seus perfis, causas de acolhimento nas instituições, projectos de vida, cuidados de educação, saúde e relações com as famílias. Numa segunda fase do processo foram efectuadas as visitas de inspecção, que, para além da vistoria às instalações, permitiram ouvir muitas das crianças e jovens acolhidos e verificar os seus processos individuais. Nesta consulta foi tido em especial atenção o cumprimento do disposto no artigo 25.º da Convenção dos Direitos da Criança e do artigo 62.º da Lei de Protecção, sobre o direito à revisão periódica da medida de acolhimento e averiguou-se o grau de conhecimento das instituições quanto à situação dos menores que acolhem. Num terceiro momento, procedeu-se a um contacto formal com a direcção do IAS, que apresentou as linhas mestras do sistema de protecção de crianças e jovens dos Açores e o programa informático de implementação do sistema de avaliação e registo em acolhimento institucional.

Recorde-se que o acolhimento em instituição é uma das medidas de promoção dos direitos e protecção de crianças e jovens em perigo previstas no n.º1 do artigo 35.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei da Protecção). Consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações e equipamento de acolhimento permanente e de uma equipa técnica que lhes garanta os cuidados adequados às suas necessidades e lhes proporciona condições que permitam a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral. Pode ser de curta duração ou prolongado, sendo que, no primeiro caso, tem lugar em casa de acolhimento temporário e, no segundo, sempre que as circunstâncias aconselhem um acolhimento de duração superior a seis meses, em lar de infância e juventude.

De acordo com os dados recolhidos, no fim de 2006 havia 406 crianças e jovens acolhidos em instituições da Região Autónoma dos Açores, maioritariamente em instituições de S. Miguel (116) e da Ilha Terceira (133). Mais de metade (227) eram rapazes, predominando o grupo etário entre os 10 e 17 anos (61%), seguindo-se-lhe o grupo de crianças entre os 4 e os 9 anos (22,1%). Os motivos de acolhimento foram, por ordem decrescente, a falta de cuidados de educação, a insuficiente alimentação e a ausência de cuidados de higiene e de saúde. Entre outros motivos relevantes, encontraram-se a carência económica, a falta de afecto e o alcoolismo dos pais, ou de quem tinha os menores à sua guarda.

O relatório – que é o primeiro a ser realizado nos Açores sobre esta temática por um órgão do Estado independente – termina com uma palavra de reconhecimento de Nascimento Rodrigues ao trabalho desenvolvido pelas instituições particulares de solidariedade social açorianas e com um apelo para que todos se empenhem em proporcionar às crianças e jovens institucionalizados “aquilo a que, no fundo, têm direito: a um futuro”.


Nota: O texto integral do Relatório está disponível no sítio da Provedoria de Justiça, através da seguinte ligação:http://www.provedor-jus.pt/restrito/pub_ficheiros/Criancas_e_JovensAcolhidosLares_e_CAT_Acores.pdf

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