Provedor de Justiça dirige recomendação à Presidente do Município de Setúbal para que sejam repostas as condições de habitabilidade de fogo lesado por licenciamento de obras particulares

O Provedor de Justiça dirigiu uma Recomendação à Presidente da Câmara Municipal de Setúbal para que sejam reparados os danos verificados numa edificação lesada pelo licenciamento de obras particulares em contravenção às prescrições sobre afastamentos mínimos dos obstáculos a janelas de compartimentos de habitação. Nascimento Rodrigues considera que este licenciamento violou o conteúdo essencial do direito constitucional a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, ao privar o reclamante de exposição à luz solar no interior do fogo arrendado em que habita. O Provedor de Justiça solicitou à presidente da autarquia que sejam apuradas as razões que levaram as sucessivas vistorias empreendidas pelos serviços municipais a nunca detectarem nada a propósito da situação que motivou a queixa que lhe foi apresentada.

O processo instruído na Provedoria de Justiça teve origem numa queixa visando o licenciamento deferido a uma obra executada em Setúbal, que confina com o fogo em que vive o reclamante. Este alegava que, em resultado das obras, teriam ficado irremediavelmente comprometidas as condições de salubridade da sua habitação, dado que alguns dos vãos ficaram privados do arejamento, insolação e ventilação naturais.

Verificou-se que a construção reclamada foi licenciada em Agosto de 2000, tendo sido apresentado um pedido de alteração ao projecto de arquitectura em Janeiro de 2002. O pedido foi remetido para apreciação do Departamento de Habitação e Urbanismo. A técnica incumbida da sua análise teve conhecimento das reclamações do morador do prédio confinante e propôs que fosse determinado o embargo da obra “como medida cautelar”. Mais tarde, em parecer de Abril de 2002, o Chefe de Divisão pronunciar-se-ia no sentido de que tal questão seria de natureza meramente privada, a ser dirimida entre vizinhos no tribunal, propondo, por conseguinte, a aprovação do projecto de alterações.

Após a aprovação das alterações, e já em resposta à Provedoria de Justiça, viria a Câmara Municipal de Setúbal a eximir-se de qualquer responsabilidade pelo ocorrido, sustentando dever imputar-se a mesma aos técnicos responsáveis pelo projecto de arquitectura, por não terem assinalado o edifício confinante, nem quando do pedido de licenciamento, nem durante a execução dos trabalhos.

Por solicitação do Provedor de Justiça, os serviços municipais realizaram uma nova vistoria ao local em Abril de 2005, tendo sido calculado que a altura do edifício reclamado atingia 15,95 metros, distando à janela do quarto de dormir do reclamante apenas 0,57 metros. Foi também pedida a intervenção da Autoridade Concelhia de Saúde, que efectuou uma inspecção sanitária ao fogo habitado pelo reclamante, da qual se destacam as seguintes conclusões:

“A habitação em causa encontra-se em muito mau estado de salubridade e segurança, tendo-se verificado humidades e infiltrações nas paredes e tectos de todas as divisões das habitações (…). Com a construção do novo edifício a distância entre a janela de um dos quartos e a fachada lateral do mesmo, dista cerca de 20cm, o que diminui acentuadamente a luminosidade e a ventilação do mesmo. Na cozinha verificou-se a existência de um gradeamento colocado pelo proprietário do terraço vizinho, o que impossibilita que esta janela seja utilizada em caso de emergência, uma vez que esta também dista da janela do reclamante cerca de 20cm.”

Estes dados foram ainda confirmados na visita efectuada por técnicos da Provedoria de Justiça, onde se verificou que certos compartimentos da residência em causa não reúnem as condições mínimas de salubridade, devido à obstrução provocada pelo edifício reclamado. É visível a degradação dos revestimentos das paredes, tectos e pavimentos dos compartimentos afectados, resultante da ineficiente ventilação e insolação das áreas exteriores e interiores da fachada em questão.

As informações recolhidas permitem aferir que, na linha de demarcação entre o edifício reclamado e o prédio habitado pelo reclamante, se verificam situações que justificam a aplicação das normas do artigo 73.º, e do artigo 60.ºdo Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), que dispõem imperativamente sobre afastamentos entre edificações. No citado artigo 73.º , prevê-se que as janelas dos compartimentos de habitação estejam afastadas, de qualquer obstáculo fronteiro que se lhes oponha, metade da altura desse mesmo obstáculo (contado acima do nível do pavimento do compartimento), com um mínimo de três metros. Já quanto à parte do edifício reclamado onde se abrem vãos de compartimento de habitação (cozinha e sala) e que se opõem à fachada do edifício habitado pelo reclamante – e onde também se verifica a existência de um vão daquela mesma natureza (cozinha) – será de aplicar o disposto no artigo 60.º, o qual obriga a guardar a distância mínima de dez metros entre fachadas de edifícios que apresentem tais características.

A imposição destes limites de afastamento pretende assegurar que a integração de um novo edifício no conjunto edificado – ou que se prevê edificar – seja feita de modo a não prejudicar a qualidade de vida das populações, garantindo um ambiente urbano sadio e equilibrado. Trata-se, pois, de um interesse público fundamental, na esfera de protecção da saúde pública, e não apenas de um critério funcional de ordenamento, ditado por motivos de melhor aproveitamento dos solos ou de paisagem urbana.


A própria Constituição da República Portuguesa (CRP), no artigo 66.º, n.º 1, reconhece a todos o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Inscreve-se na lei fundamental o direito de exigir a abstenção, por parte da Administração Central, das autarquias locais e de terceiros, da prática de acções lesivas do ambiente e o correlativo direito de as ver repelidas e obtida reparação pelos prejuízos imputados a essa violação. Ora, no caso em análise, a violação do RGEU lesa os padrões mais elementares do direito a um ambiente sadio, previsto na CRP. Conclui-se que a grave situação de insalubridade encontrada no fogo habitado pelo reclamante – que se revela, agora, praticamente inabitável – deriva da construção da habitação reclamada, pelo que o Provedor de Justiça defende a nulidade do acto de licenciamento desta construção, por violação do conteúdo essencial do direito ao ambiente.

No entanto, Nascimento Rodrigues considera que uma eventual declaração de nulidade das licenças concedidas, com a consequente sujeição da obra reclamada ao regime das obras ilegais (susceptíveis de vir a ser objecto de ordem de demolição) não será a solução mais consentânea com a defesa do interesse público, que agora importa acautelar. Tal sucede porque decorreu um lapso significativo de tempo desde a prática dos actos de licenciamento da construção reclamada e já se encontram habitadas algumas das suas fracções. Não há dados que levem a concluir que os ocupantes dessas fracções não sejam terceiros de boa fé, que têm um interesse legítimo na manutenção dos actos postos em causa.

Tendo em vista o objectivo de encontrar compromissos possíveis e razoáveis para a melhor resolução do presente problema, o Provedor de Justiça defende a execução de obras que permitam corrigir as condições de habitabilidade da residência do reclamante, ou, em alternativa, o seu realojamento. Incumbirá ao município de Setúbal prover, em primeira linha, pela satisfação dos interesses do munícipe prejudicado, porquanto não logrou provar, como lhe competia, não se encontrarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por danos causados por acto de gestão pública. Isto, sem prejuízo de poder reagir contra o reclamado particular.

Nota: O texto integral da Recomendação está disponível no sítio da Provedoria de Justiça, através da seguinte ligação:http://www.provedor-jus.pt/restrito/rec_ficheiros/Rec3A07.pdf

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