Provedor de Justiça não pede ao Tribunal Constitucional que declare a inconstitucionalidade da cobrança de IVA sobre ISP

Argumentando que o Estado português tem vindo a cobrar Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) sobre o Imposto sobre Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), um grupo de cidadãos dirigiu uma petição ao Provedor de Justiça, onde lhe era solicitado que requeresse ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art.º 16.º, n.º 5, alínea a), do Código do IVA. Os subscritores da petição defendem que se está perante uma “situação de dupla tributação”, qualificada de “altamente injusta”. Analisada a exposição apresentada, Nascimento Rodrigues considera não haver fundamentação necessária para efectuar o referido pedido de declaração de inconstitucionalidade.

Importa salientar que a edificação do sistema do IVA no nosso ordenamento jurídico teve no direito comunitário o ponto de referência básico. A norma em apreço consubstancia, na parte pertinente, uma medida estadual de execução da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, que procedeu à uniformização da base tributável do IVA a aplicar em todos os Estados-membros da então Comunidade Económica Europeia. Essa directiva europeia determina que a matéria colectável inclui, precisamente, “os impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos, com excepção do próprio imposto sobre o imposto acrescentado”. Por conseguinte, a solução legal questionada configura, antes de mais, uma norma de direito interno de transposição da citada disposição de direito comunitário derivado [o teor da norma constante do art.º 11.º, A), n.º 2, alínea a), da Sexta Directiva está na origem do preceituado no art.º 16.º, n.º 5, alínea a), do CIVA], traduzindo o cumprimento, pelo Estado português, da obrigação de dar execução, no ordenamento jurídico nacional, à Sexta Directiva.

Ora, as normas do direito interno destinadas a implementar o direito da UE, designadamente as normas de transposição de directivas, estão imunes ao escrutínio do sistema constitucional de garantia da constitucionalidade e da legalidade. De outro modo, ficaria frustado o alcance da regra da primazia, pois o direito da União Europeia ver-se-ia impedido de aplicação na ordem interna por motivo de incompatibilidade com a Constituição. É certo, no entanto, que as normas incluídas em “transposições” para lá do regime normativo das directivas estão sujeitas ao regime normal de controlo da constitucionalidade. Uma excepção que não se aplica à norma do CIVA, cuja inconstitucionalidade vem alegada, visto que não existirão dúvidas quanto ao seu alinhamento com o regime normativo da Sexta Directiva.

Ainda que a norma contestada pelos peticionários estivesse sujeita ao sistema de controlo da constitucionalidade e da legalidade consagrado na Constituição de 1976, não existe, de acordo com a formulação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 363/01, “qualquer referência expressa ao fenómeno da dupla tributação e muito menos uma sua proibição expressa”. Num outro acórdão, onde é apreciada a questão jurídico-constitucional sobre matéria de tributação do rendimento, em sede de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, o mesmo Tribunal afirmou que “não se encontra na Constituição da República qualquer explícita proibição de uma ‘dupla tributação’ do rendimento”. Ainda segundo o referido acórdão, a relevância constitucional da dupla tributação “só poderia revelar de forma indirecta, enquanto tal ‘dupla tributação’ implicasse a violação de uma regra ou princípio constitucional, como, por exemplo, o artigo 104.º, n.º 1, da Constituição, ou o princípio da proporcionalidade”, recorda Nascimento Rodrigues em resposta aos peticionários.

A contestação à situação de dupla tributação analisada assenta, no fundo, na ideia da formação de um encargo fiscal mais elevado do que aquele que resultaria da exclusão daqueles mesmos impostos do valor tributável do IVA, ou seja, na existência de uma sobrecarga tributária. No entanto, ainda que decorresse da lei – o que não se descortina – uma proibição expressa da computação, no valor colectável para efeitos do IVA, de outro imposto, não estaria o legislador impedido de, por outra via, manter semelhante quantificação de imposto devido no estádio do consumo final. Abstraindo a circunstância de a decisão sobre a matéria colectável em sede do IVA constituir uma decisão tomada pelo legislador comunitário e ditada por imperativos de harmonização fiscal, sempre poderia o legislador nacional assegurar aproximado nível de carga fiscal, sem modificações na taxa do IVA, mediante a alteração, dentro dos limites que juridicamente se lhe impõem, das taxas dos impostos que, na legislação vigente, integram a base tributável daquele imposto geral. No que diz respeito à aquisição de combustível, caso o IVA incidisse apenas sobre o preço de base das gasolinas ou do gasóleo, excluindo, portanto, o valor do ISP, o preço final do combustível poderia, afinal, não divergir daquele que decorre da vigente sobreposição tributária, continuando o consumidor final a suportar economicamente semelhante nível de carga fiscal, por força de um aumento das taxas do ISP aplicáveis às gasolinas e ao gasóleo.

Alegam também os peticionários que a situação de dupla tributação em sede de IVA é injusta, tendo em conta o princípio da justiça como parâmetro aferidor da conformidade constitucional das normas jurídicas. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, este princípio pressupõe “que esteja em causa uma solução normativa absolutamente inaceitável (…), que afecte uma dada dimensão do núcleo fundamental dos interesses essenciais da pessoa humana e que colida com os valores estruturantes do ordenamento jurídico”. O Provedor de Justiça considera que a situação em análise não configura uma solução jurídica que atinja, de modo intolerável, uma dimensão do núcleo fundamental dos interesses essenciais da pessoa ou contrarie os valores estruturantes da ordem jurídica. Assim, a questão colocada reconduz-se ao problema geral do peso da carga fiscal sobre pessoas, individuais ou colectivas – mas esse é um problema de opção política, da exclusiva competência da Assembleia da República.

Nota: O texto completo da posição do Provedor de Justiça está disponível no sítio da Provedoria de Justiça, através da seguinte ligação:

texto completo da posição do Provedor de Justiça

 

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