Provedor de Justiça recomenda ao governo que legisle para regulamentar concessão do uso privado do domínio público marítimo nas regiões autónomas dos Açores e Madeira

O Provedor de Justiça dirigiu uma Recomendação ao Governo no sentido de que seja promovida uma medida legislativa consagrando expressamente a obrigatoriedade de as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira obterem autorização prévia do Estado para a atribuição, a terceiros, de direitos de usos privativos sobre bens do domínio público marítimo.


Esta iniciativa do Provedor de Justiça, que dirigiu a Recomendação ao Primeiro-Ministro, surgiu na sequência de decisões administrativas tomadas por autoridades das Regiões Autónomas relativamente à atribuição de direitos de uso privativo sobre bens do domínio público marítimo, com o risco de comprometimento dos fins a que estes estão afectos, numa lógica de gestão centralizada da soberania do Estado.


A Constituição da República Portuguesa determina, no seu art.º 84.º, que as águas territoriais, nomeadamente as que respeitam aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, juntamente com os seus leitos e fundos marinhos contíguos, integram o domínio público do Estado, remetendo o legislador constituinte para a lei a definição dos respectivos bens, o seu regime, condições de utilização e limites.


Por seu turno, o Decreto-Lei n.º 468/71, de 5 de Novembro, determina, no seu art.º 5.º, n.º 1, que se consideram “do domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis e flutuáveis, sempre que tais leitos e margens lhe pertençam”, estatuindo no seu art.º 8.º os procedimentos com vista ao reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens públicos.


O mesmo diploma, no seu art.º 10.º, n.º 1, estabelece que “a delimitação dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza compete ao Estado, que a ela procederá oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados”.


Do quadro constitucional e legal citado, decorre, pois, que as margens das águas do mar, incluindo as dos Açores e da Madeira, integram o domínio público do Estado.


O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 131/2003 veio clarificar esta matéria, ao estabelecer que “torna-se assim manifesto que o domínio público marítimo resultante do disposto na lei compreende, nomeadamente por razões de necessária acessoriedade – as margens são indispensáveis para possibilitar a utilização das águas –, as faixas de terreno legalmente qualificadas como margem, que sejam contíguas às águas do mar ou às demais águas sujeitas à influência das marés, desde que esses terrenos estejam na pertença do Estado, o qual, por sua vez, beneficia de uma presunção juris tantum de que os mesmos são propriedade pública (…)”.


Estabelecendo a Constituição da República a existência, nas Regiões Autónomas, de um domínio público regional, as leis que aprovaram o Estatuto Político-Administrativo dos Açores e da Madeira determinaram que se exceptuam daquele “os bens afectos à defesa nacional” – ou “que interessam à defesa nacional” – e “a serviços públicos não regionalizados não classificados como património cultural”.


“Os bens indissociavelmente ligados à soberania não podem pertencer ao domínio público regional, devendo permanecer integrados no domínio público necessário do Estado, tomado este na acepção de pessoa colectiva de direito público que tem por órgão o Governo”, concluiu o Tribunal Constitucional, no citado acórdão.


Todavia, nada parece impedir que as Regiões Autónomas assumam, quanto aos bens em apreço, poderes de cariz administrativo, designadamente os que envolvem a atribuição, mediante licença ou concessão, de direitos de usos privativos sobre bens do domínio público estadual.


Se se mostrará admissível que as Regiões Autónomas atribuam direitos de usos privativos mesmo sobre bens que integram o domínio público estadual, no caso o domínio público marítimo, já não parece, no entanto, possível que esses poderes sejam exercidos pelos órgãos regionais à margem de uma autorização expressamente concedida, para o efeito, pelo titular do bem em causa, ou seja, o Estado.


Não fará sentido que, assente a impossibilidade de transferência, designadamente para as Regiões Autónomas, dos bens do domínio público marítimo, seja por sua vez possível, através do exercício de poderes associados à atribuição de direitos de usos privativos sobre esses terrenos, que as Regiões Autónomas decidam – sozinhas – efectivamente sobre a utilização a dar aos referidos bens, na prática pondo e dispondo sobre os mesmos, com o risco de comprometimento dos fins a que aqueles estão afectos, definidos numa lógica de gestão centralizada da soberania do Estado.


Perante a situação em apreço, o Provedor de Justiça recomendou ao Primeiro-Ministro “a promoção, pelo Governo, de medida legislativa que expressamente consagre a obrigatoriedade de as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira obterem autorização prévia do Estado – através do Governo ou de outra entidade do Estado à qual seja conferida essa competência – para a atribuição, a terceiros, de direitos de usos privativos sobre bens do domínio público marítimo”.

-0001-11-30