Razões de uma razão (I)

Afirmar o comprometimento não basta. Necessário é realizar o comprometimento. Isto significa, na linearidade das coisas, que o Provedor deve assumir, sem reservas, esse mesmo comprometimento. Assim, dentro deste horizonte, se é certo que o Provedor é um “órgão do Estado que tem por função principal a defesa e promoção dos direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos”, não é menos verdadeiro que a realização daquele propósito, mesmo na vertente que se prende com o lado da defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, se não deve quedar, estritamente, na esfera de uma queixa e no seu consequente desenvolvimento e bom êxito. É obrigação do Provedor, em meu juízo, estar particularmente atento e vígil às solicitações que aparentemente quase não conformam aquilo que, vulgar e formalmente, se usa chamar queixa.
 
Há, na verdade, uma antecâmara da queixa que é já também queixa mas que o cidadão, porque a sente de forma difusa, inconsistente, fluida, não é capaz de formalizar como tal mas que, na sua essência, deve ser compreendida pelo Provedor como uma inequívoca queixa.
 
Sejamos claros na compreensão daquilo que verdadeiramente sempre o Provedor deve ouvir e de que deve cuidar. De que cuidará. O grande horizonte — e aqui não vai sequer um grão de demagogia ou de hiper-simplificação na valoração das relações do Estado com os seus cidadãos nos mais diferentes patamares — no qual se move e deve mover o Provedor, e do qual jamais se deve afastar sob pena de trair a sua natureza, é o de estar atento à menor expressão de injustiça que os cidadãos possam manifestar. É óbvio que não estamos a falar de queixas injustificadas, falsas ou que exprimam má-fé. Não. Nada disso. O que queremos salientar e sublinhar a traço grosso prende-se com aquilo que, à míngua de uma outra e melhor expressão, se poderia apelidar de “lamentação”. Porém, é indispensável afirmar, para que não surjam dúvidas ou insinuações desajustadas, que se trata de lamentações que se não confundem com as lamentações morais ou mesmo psicológicas ou, muito menos, com estados de alma ou, ainda menos, com exaltações que mais não são do que perturbações. São lamentações que exprimem objetivamente um desconforto social e individual, para dizer o mínimo, mas o cidadão comum não quer ou não sabe exprimir essa franja do seu fundamentado sentir através de uma queixa. Ilustrações manifestas: o cidadão que anda em cadeira de rodas lamenta que grande parte dos edifícios onde funcionam serviços públicos não tenha os meios adequados para ele autonomamente poder a eles aceder; o cidadão invisual lamenta que os passeios das ruas estejam pejados de pinos porque os cidadãos automobilistas, incivilmente, param em cima dos passeios com o mesmo à vontade com que bebem um copo de água e por isso, preventivamente, há que plantar escolhos; o cidadão, velho, não tenhamos medo das palavras, que vive em uma aldeia ou lugar, nos confins do interior do Portugal profundo e pobre que não tem mais de vinte “almas”, lamenta ter que pedir, sempre, a terceiros para poder receber a sua parca pensão. Eis casos de “lamentações” que podem não ser queixas no seu mais exato e comum significado mas que o Provedor não pode deixar de aceitar.
 
Sim. O Estado tem, através do Provedor, o incomprimível dever de as ouvir, de as aceitar e de delas curar. De curar das lamentações que mais não são do que uma genuína, legítima e adequada antecâmara das queixas e que, mesmo para os mais puristas, nestas cabem, em substância e por direito próprio. Só nessa dimensão mais funda o Provedor percebe para prover.
 
José de Faria Costa

(Provedor de Justiça)

 

 Díário de Notícias, 04/09/2013

 

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