Saúde Pública made in União Europeia. Base legal habilitadora e limites da competência europeia em matéria de Saúde Pública (Artigo 152.º do TCE)

A protecção da saúde constitui uma das tarefas essenciais do Estado e um direito fundamental social dos cidadãos cuja realização depende de uma actividade mediadora dos poderes públicos.


Ainda que, tradicionalmente, a protecção da saúde apresente uma estreita ligação à identidade e soberania nacionais, é actualmente reconhecida a crescente importância da vertente global da saúde, com influência nas políticas nacionais, merecendo particular atenção o papel desempenhado pela União Europeia neste domínio social.


Até 1999 a Comunidade Europeia (CE) não teve qualquer autoridade legislativa no domínio da Saúde Pública, sendo que até 1993 não existia, tão pouco, a consideração explícita da Saúde Pública enquanto fim autónomo a prosseguir.


Actualmente, a competência da CE resulta directamente da conjugação dos artigos 3.º, n.º 1 al. p) do TCE e 152.º ibid., e centra-se na noção de Saúde Pública.


Apesar de não existir um conceito unitário de Saúde Pública, o artigo 152.º do TCE, que constitui a base jurídica habilitadora nesta matéria, define o âmbito, limites e instrumentos de actuação dos órgãos comunitários tendo em vista a garantia de um elevado nível de saúde.


Aos diferentes objectivos consagrados no TCE, em matéria de Saúde Pública, correspondem instrumentos de actuação distintos. Em termos gerais é possível distinguir quatro linhas de actuação: apoio e coordenação, programação da actuação comunitária, cooperação com países terceiros e uma área de intervenção legislativa. Entre medidas de coordenação e medidas programáticas de eficácia variável, a intervenção legislativa em matéria de saúde é ainda residual, limitando-se, até agora a dois ramos, a) qualidade e segurança dos órgãos e substâncias de origem humana, do sangue e dos derivados do sangue, e b) domínios veterinário e fitossanitário que tenham directamente por objectivo a protecção da Saúde Pública.


O Tratado de Lisboa pretende acrescentar aos dois domínios atrás indicados, a qualidade e segurança dos medicamentos e dos dispositivos de uso médico, como um terceiro ramo de competência para o legislador europeu.


A par da competência directa, plasmada no artigo 152.º do TCE, o princípio da protecção horizontal é uma referência adicional obrigatória. Na medida em que obriga a União a ponderar os aspectos relacionados com a saúde em todas as outras políticas comunitárias, este princípio pode funcionar como uma fonte de extensão da competência em inúmeras circunstâncias. Na verdade, se bem que indirectos, os poderes que daqui derivam podem ser extremamente alargados e constituem, na prática, uma fonte relevante de medidas legislativas com incidência sobre a protecção da saúde.


Elemento essencial no recorte da competência europeia em matéria de Saúde Pública é a complementaridade da competência da União relativamente às competências dos Estados-membros. Ainda que tal não resultasse expressamente da letra do Tratado, o que se verifica de forma reforçada na redacção do artigo 152.º do TCE, sendo a Saúde Pública um domínio de competência concorrente, o respeito pelo princípio da subsidiariedade conduzir-nos-ia em qualquer caso à conclusão de que a responsabilidade primeira pelas políticas de saúde compete aos Estados Membros. São estes os verdadeiros “senhores da política de Saúde” .


Apesar do cuidado reforçado na estipulação da mera complementaridade da actuação comunitária, a delimitação das competências entre a União Europeia e os Estados-membros, neste domínio, nem sempre é clara, sobretudo nos casos em que a União interfere na saúde através de matérias afins, invocando bases jurídicas habilitadoras distintas do artigo 152.º do TCE. É precisamente a situação das intervenções desencadeadas ao abrigo das normas concretizadoras do mercado interno, mas também, no âmbito da política agrária, da protecção do consumidor ou do ambiente.


Para além do paulatino alargamento da competência e domínios de actuação europeia que estas intervenções transversais consentem (v.g. a proposta de directiva relativa aos direitos dos doentes nos cuidados de saúde transfronteiriços), são de prever modificações na base legal habilitadora da competência europeia em matéria de Saúde Pública, impostas pela entrada em vigor do Tratado de Lisboa, que confirmam esta tendência expansiva.


Em suma, apesar de não ser reconhecido um direito europeu da saúde, como acontece com tantos outros ramos de direito administrativo, e não obstante a limitação expressa da competência em matéria de Saúde Pública, a União Europeia tem desempenhado um papel marcadamente activo neste domínio, com repercussões relevantes para os sistemas de saúde nacionais. Para o futuro antevê-se a continuidade e até o aprofundamento da evolução registada até ao presente.


Sara Vera Jardim


Texto publicado in Lex Medicinae, Ano 6, n.º 11 (2009), p. 67-93 com o título: Saúde Pública made in União Europeia. Base legal habilitadora e limites da competência europeia em matéria de Saúde Pública (Artigo 152.º do TCE).

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